Quando a coragem vem do céu

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Base Aérea nº 6, Montijo. Cinco da manhã. Madrugada de Março.

Um frio de rachar. Toca o telefone. Aquele toque irrompe pelo silencio do quarto com violência.

Todos os tripulantes sabem bem o que uma chamada a estas horas significa.

“Meu Tenente, é para activar o alerta”.

Dando razão a Pavlov e à sua teoria, estas palavras como que provocam uma reacção automática instantânea. Em quinze segundos o fato de voo está vestido, as botas estão calçadas e a cara está salpicada com aquela água gélida que sai do lavatório.

“Qual é a situação, é para onde?”

“Cargueiro a afundar com mais de 20 tripulantes. Cento e oitenta milhas da costa da Galiza.”

“Galiza? Espanha?” 

A Esquadra 751 “Pumas” é hoje responsável pela maior zona de busca e salvamento da Europa, estando presente com aeronaves e tripulantes em alerta permanente em Portugal Continental, Açores e Madeira.

A 751 nasceu a 28 de Abril de 1978. Fruto da reorganização da Força Aérea Portuguesa do pós 25 de Abril, e aglutinando alguns dos helicópteros SA-­330 “Puma” adquiridos pelo antigo regime para uso nos territórios ultramarinos, a Esquadra 751 foi criada com a missão primária de execução de missões de Busca e Salvamento, seja em apoio às Forças Armadas ou à sociedade civil.

Na altura as Forças Armadas portuguesas dispunham principalmente de duas aeronaves de asa rotativa: o Alouette 3 (helicóptero de construção francesa, pequeno, robusto e fiável, imagem gravada a ferro na mente de todos aqueles que combateram em África) e o SA-330 Pumas (maior, mais potente, mais moderno).

Esquadra-751

 

Estas duas aeronaves partilharam entre si as missões existentes, fosse em território continental, fosse nas ilhas dos Açores. Ao longo da sua história inicial a Esquadra 751 foi protagonista de diversas missões dignas de destaque, pouco comuns, que não se limitavam à Busca e Salvamento. A instalação da antena de Muge (Rádio Renascença) com 265 metros, a electrificação da aldeia de São Romão na Serra da Estrela ou a colocação da cúpula do Farol do Bugio em 1981 são exemplos de missões que ultrapassam o âmbito da sua principal missão.

Mas a Busca e Salvamento é, sem dúvida, a razão de ser da 751. Com o SA-­ 330 “Puma” foram mais de duas mil as vidas salvas só em território continental. Um número avassalador.

“Bom dia”.

“Ei.” 

A tripulação cumprimenta‐se em passo apressado no edifício da Esquadra. Construção moderna, a “casa‐mãe” da 751 divide‐se em duas secções principais. Uma área operacional com salas de briefing, operações, planeamento e guerra electrónica, e uma área social com o tão icónico bar de Esquadra e instalações de apoio. É na primeira que todos se reúnem.

“Então ouvi dizer que vamos até Espanha…”

Um cargueiro de bandeira dos Barbados, de nome MV KEA, encontra­‐se a afundar ao largo da costa da Galiza. Sensivelmente a cento e oitenta milhas náuticas do cabo Finisterra. Por não possuírem uma aeronave com as capacidades de alcance e transporte como o EH‐101 “Merlin”, operado pela Força Aérea Portuguesa, as autoridades espanholas requerem o apoio do estado português.

“Está tudo? Vamos embora!”.

Diz o comandante de missão. O barulho característico dos motores Rolls Royce Turbomeca invade a pacatez desta madrugada da península do Montijo. A missão irá levá‐los até Santiago de Compostela para reabastecer antes de prosseguirem para a zona de operações. Rodas no ar. Siga!

A Esquadra 751 opera hoje em dia doze helicópteros EH‐101 “Merlin”. Adquiridos ao consórcio italiano­‐britânico Agusta Westland (AW), o EH­‐101 representou um salto quantitativo face às capacidades do seu predecessor. Equipado com três motores e com um peso máximo à descolagem de 15.6 toneladas, as primeiras duas aeronaves aterraram em território nacional em 2005. Com o EH-­101 “Merlin” a Esquadra 751 quase que duplicou o seu raio de operação.

As doze aeronaves adquiridas encontram­‐se dividas em três diferentes versões: seis em versão básica SAR (Search and Rescue), duas em versão SIFICAP (fiscalização e controlo das actividades piscatórias, equipadas com equipamento específico para esta missão) e quatro em versão CSAR (Combat Search and Rescue), aeronaves com equipamento e provisões especiais para efectuar missões em ambientes de combate.

Todas as doze aeronaves podem, e cumprem, a missão primária da Esquadra 751: Busca e Salvamento.

As suas tripulações não lhe poupam elogios. Equipado com um piloto automático de última geração os membros da 751 podem hoje efectuar um sem número de missões que seriam impossíveis à quinze anos atrás. Aeronave cara é certo. Mas sem ela, e sem as suas capacidades, muitas vidas teriam ficado por se salvar. Afinal de contas Portugal possui a maior área de responsabilidade de Busca e Salvamento da Europa… e o EH‐101 é essencial para cobrir o máximo possível dessa mesma área.

Caso para perguntar, qual o preço de uma vida humana?

O voo para Santiago é atribulado. Muitas nuvens. Gelo. Turbulência. Especialmente à passagem da Serra do Gerês. Aquele café bebido à pressa na Esquadra vale ouro. Não. Vale mais do que ouro.

A tripulação aterra em Santiago onde o reabastecimento é efectuado o mais rapidamente possível. Nesse instante aterra um helicóptero “Super Puma” espanhol, proveniente da área de operações. Regressa com um náufrago. Devido à falta de autonomia da aeronave foi-­lhes apenas possível resgatar um elemento. Descrevem uma situação de caos total. Hora de descolar novamente. A hora e meia que os separa da zona operacional parece-se com dias. A ansiedade acumula-­se. Discutem-‐se os últimos pormenores da missão. Afinam­‐se estratégias. Inicia­‐se a coordenação com autoridades espanholas no local, que entretanto já tinham enviado uma aeronave de asa fixa e encaminhado alguns navios civis para a área para auxiliar.

A sensivelmente cinquenta milhas náuticas já é possível ouvir na frequência de emergência marítima a voz, carregada de stress, de um qualquer náufrago e de um operacional de busca e salvamento espanhol que, desesperadamente, lhe dizia para abandonar o navio. Esta comunicação aguçou em todos um sentido de urgência. Mas não havia nada a fazer. A velocidade já lá estava: no máximo.

Cem militares constituem hoje a 751. Homens e mulheres que se dividem entre si em diversas funções. Pilotos, recuperadores salvadores, operadores de sistemas (os homens que operam o guincho), mecânicos, pessoal de apoio e, dependentes do centro de saúde da Base Aérea nº 6, mas completamente enquadrados na Esquadra, os enfermeiros.

A tripulação típica de um helicóptero de Busca e Salvamento é constituída por cinco elementos: dois pilotos, um recuperador salvador, um operador de sistemas e um enfermeiro, podendo ser aumentada consoante a necessidade por outros elementos (como é o caso de equipas do INEM que regularmente embarcam em missões operacionais).

Dentro do helicóptero toda a equipa trabalha como um só. A coordenação, a sincronia e a clareza não são aqui uma vantagem. São uma obrigatoriedade. A missão só se cumpre, aquela vida só se salva, se todos trabalharem dessa forma. E isso consegue-­se com treino. Muito, duro e intenso treino.

Será talvez difícil expressar por palavras a complexidade de uma operação de guincho em alto mar. Mas imaginemos o seguinte: um helicóptero de catorze toneladas submisso aos elementos e às leis da física, um mar, violento, com vagas de seis metros, e um pesqueiro, de pequenas dimensões (por vezes de tamanho inferior ao helicóptero) que teima em não estar quieto.

Se juntarmos a isso a necessidade de colocar um homem, preso num cabo, num espaço nesse pesqueiro que tem um metro por um metro, talvez possamos começar a ter uma pequena ideia da tarefa herculana que as tripulações de busca e salvamento de helicópteros passam.

Mas todos eles, todos os membros da Esquadra 751, encaram essa missão com naturalidade. “É o nosso trabalho” dizem eles. Vê-se, sente-­se, respira­‐se um espírito de abnegação que nos torna a todos mais humildes.

“SASEMAR, SASEMAR, this is RESCUE 23 calling on guard, we´re 3 minutes out”.

E ali estava ele. O MV KEA. Um imponente cargueiro, tombado de lado. Nem se assemelhava a um navio. Era como um grande destroço.

MV-KEA-Esquadra-751

 

 

À deriva, à mercê dos elementos. Em toda a sua volta a água estava negra, negra da Nafta, libertada dos seus tanques. E como um mal nunca vem só, as vagas chegavam aos oito metros de altura. No meio disto tudo pequenos pontos laranjas. Náufragos.

“Ali, do lado direito, três náufragos”.

O operador de sistemas – o homem responsável por operar o guincho e guiar os pilotos para a vertical do objectivo – iniciava a sua operação.

“Dez em frente, dois à direita”.
Este elemento guia o piloto através de uma escala numérica que não tem um significado próprio. Não são metros. Não é nenhuma unidade de medida específica. É apenas uma unidade mental com que ambos trabalham que vai diminuindo à medida que se vão aproximando do objectivo. A juntar a isto, o recuperador salvador, já preso no cabo, dá igualmente indicações ao operador de sistemas. Uma verdadeira cadeia de comunicação. Recuperador, Operador de Sistemas, Piloto.

“Oito em frente, um à direita”.

“Seis em frente”.

“Três em frente”.

“Um em frente”.

“À vertical. Mantenha”.

“Contacto!”

E assim foi, náufrago atrás de náufrago, foram recuperados cinco elementos de mar aberto. O próprio recuperador salvador estava completamente negro, dos pés à cabeça. Aquela nafta, que tão intenso cheiro largava, colocou todos dentro do helicóptero com uma sensação de enjoo. Enquanto toda esta acção se desenrolava um navio de busca e salvamento espanhol, que entretanto tinha chegado à área, resgatava outros elementos da tripulação do MV KEA.

EH-101 Merlin Sirius

Com uma quantificação dos elementos resgatados efectuada chegou­‐se à conclusão que dois elementos da tripulação estariam desaparecidos. E o Merlin ainda tinha alguns minutos de autonomia. A missão não terminava aqui.

Era necessário efectuar uma busca na área antes de regressar a Santiago de Compostela. Os bares da esquadras de voo são provavelmente os locais mais icónicos para os militares que dela fazem parte. É o seu canto. A sua aérea de repouso.

O seu retiro. Qualquer bar estará decorado de forma efusiva. Paredes cheias de quadros onde nem mais um prego caberá. Dezenas de troféus e lembranças espalhadas pelos armários. Fotos de quem lá serve e fotos de quem por lá já serviu. Mas até nisto o bar da Esquadra 751 é diferente. Nas suas paredes, para além de tudo o que foi acima descrito, encontram-se igualmente coletes salva-vidas, t-­shirts, barbatanas e outros acessórios de náufragos resgatados pela Esquadra.

E neles, inscritos a caneta para todo o sempre, está o nome da tripulação envolvida no resgate, as coordenadas e o número de náufragos.

“São as nossas medalhas” dizem eles. “A nossa inspiração. O que nos faz acordar todos os dias de manhã”. Em toda a volta, dezenas de coletes, reais, cada um com uma história.

Cada um representando um pai que voltou para o filho, um filho que voltou para a mãe, um marido que voltou para a mulher. E para eles, militares da 751, são o seu bem mais precioso. O que de mais valioso tem aquele espaço.

Entrega-premio-em-Barcelona-Esquadra-751

Salão Náutico de Barcelona. Novembro de 2010. A tripulação de RESCUE 23 que participou no resgate do MV KEA encontra-­se novamente reunida, com excepção do recuperador salvador que, por motivos de força maior não pode estar presente.

Desta vez o fato de voo ficou em casa. Estão de farda número um, impecavelmente composta, para receber por parte do governo espanhol (através da sua agência marítima SASEMAR) o prémio “Ancla de Plata” 2010.

O reconhecimento, por parte de um estado estrangeiro, da sua inestimável contribuição para a salvaguarda da vida humana. O orgulho está lá. Espelhado na face de cada um dos tripulantes.

A Esquadra 751 celebra neste 28 de Abril o seu 37º aniversário. E celebrou-­o da melhor maneira. A HAI (Helicopters Association International) contemplou a Esquadra 751 com o prestigioso “Sikorsky Humanitarium Servisse Award”. Um Óscar da aviação de asa rotativa. Este prémio, de tão elevado prestígio mundial, representa trinta e sete anos de profissionalismo, de sacrifício e de dedicação ao próximo.

São trinta e sete anos de mais de vinte mil horas de voo e mais de 3100 vidas salvas.

São trinta sete anos de história e de estórias.

São trinta e sete anos a voar “Para que outros vivam”.

Parabéns Esquadra 751!

Para consulta Página oficial – www.emfa.pt/esquadra751

Canal Vídeos oficiais – www.youtube.com/esquadra751

Fotos : FAP/André Garcez

 

Ricardo Nunes


Nota: Todos os textos publicados na secção blogger integram um espaço de participação dos leitores e seguidores, que convidamos para tal. São da responsabilidade do autor, sendo que não expressam necessariamente a opinião da NEWSAVIA.

Ricardo Nunes - Blog - NewsAviaApaixonado desde sempre por aviação, o ingresso na especialidade de piloto na Força Aérea Portuguesa em 2005 foi consequência natural desse facto. Piloto operacional de Alouette 3 e de EH-101 “Merlin”, exerceu funções como piloto comandante de busca e salvamento a partir de 2011. Em 2013 ingressou na TAP Portugal. Natural de Lisboa, participa igualmente na organização de diversos eventos de aviação.

 

2 COMENTÁRIOS

  1. Muito bem escrito… Muito bem sentido… Parabéns por trazeres na alma tão linda voz! Continuo a acompanhar a tua escrita, agora que a conheci, pois nunca li ninguém tão “vivo”, tão profundo… tão sincero! Conseguir passar para a ponta dos dedos aquilo que nos vai na alma não é para qualquer um. Ter a nobreza de reconher vários seres como um só, é nobre! Parabéns! Para que outros vivam!

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