A Feitoria da Ilha do Gato

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Como disse no meu primeiro artigo aqui para o blog, há muito tempo atrás, nós pilotos somos “seres apátridos. Por sua própria natureza, de cruzar fronteiras impunemente, de ver o mundo todos os dias de uma perspectiva que ignora territórios coloridos num mapa, tripulantes em geral são relativa – ainda que não totalmente – desapegados de suas origens e afeitos a conhecerem novos horizontes.”

Porém, mesmo desapegados, temos uma base. Todo piloto tem uma. Seja permanente ou temporária, todos nós operamos a partir de um lugar, e é dele que decolamos mais frequentemente e nele que pousamos mais frequentemente. E só isso – independente de morarmos lá ou não – já torna aquele aeroporto especial. Afinal, conhecemos seus detalhes, sua rotina, os humores de sua meteorologia, as nuances de seu relevo. Decoramos seus mínimos, suas taxiways, suas peculiaridades. Até a voz dos controladores nós aprendemos a reconhecer com o tempo.

A minha primeira base foi São Paulo. SAO, porque englobava três aeroportos. Congonhas (CGH/SBSP), Guarulhos (GRU/SBGR) e Viracopos (VCP/SBKP). Meu primeiro voo como comissário partiu de Guarulhos, em outubro de 2005. E de lá decolei e pousei como auxiliar, e posteriormente como chefe, por milhares de vezes. Morei em São Paulo, ao lado de Congonhas. Depois mudei-me para Guarulhos, ao lado do aeroporto de mesmo nome. De lá conheci a Patagônia e a Florida, e quase tudo entre as duas. Mas nesse tempo todo, embora eu fosse de Florianópolis e minha família fosse do Rio, morei na base. E isso faz toda a diferença, já explicarei porquê.

Entre 2012 e 2013 passei quase um ano nos Estados Unidos, para fazer toda minha formação de piloto. Embora de lá saíssem só meus voos de instrução e navegações em que eu alugava um avião com um colega, não deixava de ser uma base. E DeLand (DED/KDED), na Florida, tornou-se um aeroporto extremamente familiar. Decolei e pousei em suas quatro pistas, em seus procedimentos visuais e por instrumentos, centenas de vezes, incluindo meus primeiros. Lá também morava na base, e muitas vezes fui inclusive de bicicleta para o aeroporto.

Faz parte da maior comunidade de aviação em portuguêsEntão, em 2015, comecei a voar profissionalmente, como copiloto de Boeing 737NG. E embora eu não tenha mudado de empresa, minha base mudou. Agora, eu era baseado no Rio de Janeiro. Por uma decisão pessoal, resolvi não me mudar para lá. Não só por causa das minhas relações familiares, que agora haviam se deslocado principalmente para São Paulo e Santa Catarina, mas também porque ao meu ver o Rio não era uma opção viável em termos financeiros e de qualidade de vida – e muitas pessoas discordariam de mim nisso, mas como eu disse, é uma decisão e uma impressão pessoal. Então, ao contrário de ter uma casa, como fora em São Paulo e na Florida, agora eu dividiria um apartamento com colegas para diluir os custos de um lugar onde eu só dormia quando não tinha como voltar para casa. Como no meu primeiro ano de base eu só operava do aeroporto internacional (GIG/SBGL), escolhemos ficar na Ilha do Governador, bairro onde ficava o aeroporto, e relativamente seguro se comparado aos bairros vizinhos. Não foi fácil achar um local tranquilo e por um preço condizente com nossa renda, mas no fim, dividindo em vários colegas, pilotos e comissários, acabamos, após três tentativas em outros imóveis, nos estabelecendo na Praia da Bica. Essa vida de crashpad, como diz-se em inglês desses apartamentos onde vários tripulantes se revezam para economizar, é bastante desconfortável por razões óbvias, e a escolha criteriosa dos colegas – muitos dos quais grandes amigos – com os que dividíamos era fundamental para mantermos a boa convivência e sanidade, em longos períodos longe de casa, numa cidade quase estranha – mesmo para mim, que havia morado no Rio durante a faculdade, uma década e meia antes.

Curiosamente, foi ali, naquela ilha, que portugueses estabeleceram a primeira feitoria em território americano. Entre 1504 e 1517, funcionou na Ilha do Governador, então chamada “Ilha do Gato”, um estabelecimento onde três ou quatro europeus passavam o ano, em regime militar e com condições precárias de conforto, mantendo o mínimo de contato com os nativos, dos quais recebiam as toneladas de toras de pau-brasil, que em épocas específicas, vinham ser apanhadas por naus da metrópole. Guardadas as devidas proporções, era assim que muitos de nós nos sentíamos ali. Isolados, em meio a uma cidade com a qual em pouco nos identificávamos, por mera relação profissional. Para mim, pessoalmente, esses anos lá só foram atenuados pelos familiares que ainda moram no Rio, e que tive a chance de visitar várias vezes nesse período, e pelos muitos colegas e amigos maravilhosos que fiz por lá. Em maio de 2016, comecei a operar também no Santos Dumont (SDU/SBRJ), e o mês das Olimpíadas foi o pior: dormi metade do mês no Rio, além do que chegar no Santos Dumont, do outro lado da cidade, em horários insalubres, era um pesadelo logístico. Nos melhores meses, dormi três noites. Muito mais do que dormiria em uma base como São Paulo, por exemplo: morando em Florianópolis, os voos do Rio para lá eram muito mais esparsos e raros do que de São Paulo, que além de tudo, era 25 minutos de voo mais próxima de minha cidade natal e onde escolhera morar. Enfim, morar fora da base foi uma experiência bastante desgastante, e nesses três anos, peguei centenas de voos e passei milhares de horas a mais longe da minha casa do que seria necessário se tivesse morado na base ou mesmo na base anterior. Mas ao menos, ir e voltar de avião de casa para o trabalho me rendeu tempo e matéria para nosso querido blog.

Agora, finalmente, como antecipado no artigo anterior, vou mudar de base. E o melhor, vou morar nela. É longe, bem longe. E será necessário encarar muitas horas de voo para visitar minha família e amigos que por aqui ficarão. Mas é um passo inevitável na minha carreira, e que com certeza trará muita riqueza aqui pro blog também. Não percam as cenas dos próximos capítulos.

Foto: centro do Rio de Janeiro visto do trapiche da Praia da Bica. Fora os prédios e as pontes, essa era a vista que os primeiros portugueses tinham ao olhar para a entrada da Baía de Guanabara, à espera dos navios lusos, cinco séculos atrás. Por muitas vezes, essa vista também nos serviu de alento nos dias longe de casa.             

 


Nota: Todos os textos publicados na secção blogger integram um espaço de participação dos leitores e seguidores, que convidamos para tal. São da responsabilidade do autor, sendo que não expressam necessariamente a opinião da NEWSAVIA.

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