A Goiaba-Araça

Data:

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Trabalhei por 17 anos num esquadrão da Força Aérea Brasileira, o Primeiro do Sexto Grupo de Aviação – 1°/6° GAv, sediado na cidade do Recife/PE.

Somei quase cinco mil horas de voo, em missões operacionais, realizando aerolevantamentos fotográficos por todo o Brasil. E foi durante um voo que vivi a mais pungente e dramática experiência da minha vida. A morte anunciou-se com a clareza e força de um relâmpago. Iluminou a futilidade de minha curta e prazerosa existência. Dali para frente eu mudei minha vida.

Vinte e dois de agosto de mil novecentos e noventa e dois. Há uma semana, trabalhávamos em Cachimbo/PA fotografando uma área militar sob suspeita de invasão por grileiros e madeireiros. Naquele dia, voamos pela manhã e à tarde. E, ainda em voo, o comandante decidiu pousar em Cachimbo, abastecer e iniciar o retorno para o Recife, com pernoite em Petrolina/PE – Juazeiro/BA.

Chegamos por volta das 17:00h em Porto Nacional/TO para reabastecimento do R-95 Bandeirante. Decolamos. E após mais duas horas e dez minutos de voo, pousaríamos em Petrolina/PE. Anoiteceu. Noite clara. Céu estrelado.

– “Estranho, cadê as luzes da cidade? Estamos em descida para procedimento de pouso, mas a cidade sumiu!

Não há luz alguma lá embaixo! Não tem aeroporto. Não tem pista de pouso. Só a escuridão”.

Depois dos dois pilotos e do Boaventura, o outro fotógrafo da tripulação, fui o primeiro saber da situação: estávamos perdidos. Os pilotos decidiram manter o rumo original e subir para 10.000 pés de altura para economizar combustível. Através do rádio do avião, tentavam de todos os meios definir nossa localização.

Além de nós, havia mais quatro tripulantes: dois oficiais especialistas em Fotografia Aérea, major Aguiar, e capitão Muller, o tenente aviador Roberto, o 1° sargento mecânico Castro, o Camisão. O radar do Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle do Tráfego Aéreo – CINDACTA III, em Recife, não rastreava nossa aeronave. E perdidos voamos noite adentro.

Lá embaixo, luzes esporádicas no breu da terra. Aqui em cima, o desespero e a aflição.

O Boaventura, que até então estava lá na frente, sentado numa caixa térmica junto aos pilotos, foi mandado lá pra trás. Sentou e se cobriu todo com uma manta. Fico sabendo que temos combustível para mais duas horas de voo.

Duas horas que duraram uma eternidade…

Voamos em direção ao litoral, em busca de cidades mais densamente povoadas, e consequentemente uma pista de pouso. Com referências visuais, voamos sem saber para onde e nem como pousar. Depois de uma hora e meia de voo já havíamos passado por duas cidades, mas como não localizamos nenhuma pista ou local para um pouso eventual, decidimos prosseguir para a terceira e derradeira, pois como calculávamos nosso combustível, aquela era nossa última chance de pouso.

Lá na frente, em nossa direção, avistamos a claridade de uma cidade. Nas proximidades, os pilotos decidem descer para procurarmos o aeroporto, a pista. Ficamos circulando sem saber que lugar era aquele e o combustível muito perto do fim. Mais 30 minutos, no máximo.

Olho para baixo e vejo uma praça pública apinhada de gente. Uma multidão em festa. Música. Fogos de artifícios pipocam no ar. Senti tristeza. Frustração. Medo. Medo de morrer. Jovem demais para morrer!

Lembro de Carlos Castanheda: “… a morte é uma conselheira. Está sempre à distância de um braço. Pronta para o abraço inevitável, a qualquer instante, qualquer lugar. E, nessa consciência profunda da imprevisibilidade da morte, nossas ações, sonhos e pensamentos adquirem poder”.

O capitão Muller liga o seu walk-man a procura de uma frequência de rádio FM, numa tentativa desesperada de saber nossa localização. Os pilotos acharam uma rodovia que atravessa a cidade. Decidiram tentar um pouso forçado. Vamos tentar pousar na rodovia. À noite, sem balizamento e com carros transitando. O acidente atingia a sua irreversibilidade.

“É Juazeiro do Norte! É Juazeiro do Norte!” O grito do capitão Muller abafou o ruído dos motores. Acabara de ouvir no rádio, após um discurso político a saudação: “…viva Juazeiro do Norte! Viva o Ceará!!!!

Imediatamente os pilotos selecionaram a frequência do NDB da cidade. E a barra do instrumento apontou a localização do aeroporto. Iniciamos círculos a baixa altura. Olhos grudados noite afora à procura da pista…

Minha família, mãe pai irmãos. Os amigos de farda, da faculdade… Maria Eduarda.

“Ah! Não é verdade que isto está acontecendo”.

– “Achei! Achei!”, gritou o tenente Schonhardt que decidiu e convenceu o comandante, tenente Souza, que ele faria o pouso. Curva à esquerda. Demorada e aflita. Estabiliza. Nariz para baixo e aí vejo a pista. A pista não! Só um pedaço dela! A aproximação final num ângulo de quase 40°!

– “Mas o que é aquilo? Um carro com faróis acessos entra na pista, na nossa frente!

Será uma tentativa desesperada do motorista tentando avisar que a pista está interditada?

Na dúvida, o piloto não vacilou: “Vou pousar esse avião de qualquer jeito. Agora!!”

Os pneus tocam o asfalto. Reverso dos motores e o corte. O avião ficou ali mesmo, no meio da pista onde parou. Saímos em correria. Gritos. Abraços efusivos. Choro.

Gargalhadas.

– “Cadê um telefone? Preciso contar a todos que acabei de renascer!”

O motorista do carro se aproxima. Ele nos conta que mora próximo ao aeroporto e observou o avião circulando a baixa altura e resolveu iluminar a pista com os faróis do carro, tentando nos orientar… e ainda nos emprestou o carro para irmos à cidade comemorar nossas sobrevivências. Um churrasco a rodízio, regado a cerveja.

Na manhã seguinte, passeando em volta do alojamento onde dormimos, achei um pé de goiaba carregado.

Uma goiabeira diferente, frutos pequenos. Naquela primeira mordida, descobri a divindade oculta nas coisas mais simples e aparentemente insignificantes. Que delícia! Que sabor indizível! Paulo de Tarso caído ao chão no caminho de Damasco…

Meus olhos, coração e mente se abriram num êxtase divino. Mastiguei a carne do mundo em comunhão com a vida.

Vida louca. Vida Breve. Vida bela.

Autor: Marcus Tullius Nascif Amm
Fonte:
 www:aeroboero.com
Crédito da Foto: Força Aérea Brasileira – Sargento Simo


Nota: Todos os textos publicados na secção blogger integram um espaço de participação dos leitores e seguidores, que convidamos para tal. São da responsabilidade do autor, sendo que não expressam necessariamente a opinião da NEWSAVIA.

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