As cinzas dos pilotos malvados

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Eu tive sorte na vida. Tive a oportunidade de aprender algumas coisas bastante cedo. Nem todos tiveram as mesmas oportunidades, assim como muitos que tiveram, delas não tiraram proveito – obviamente eu também quase sempre acho que poderia ter feito mais e ido melhor.

Estamos na era da patrulha ideológica, do halterofilismo intelectual, do linchamento virtual. Desaprendemos muito com tudo que passamos, ao longo dos milênios, para chegar ao conforto de nossas casas e facilidade de comunicação de nossa rede mundial de computadores – e smartphones. E esquecendo como era antes, perdemos a noção do quão valiosa e poderosa essa ferramenta é. Tivemos uma demonstração surreal essa semana.

Antes de muita gente, eu vi o vídeo do solo do Ribeirinho. Não achei nada demais, e vi pertinência no assunto abordado, conversamos inclusive sobre o tema, sobre as inseguranças nessa fase da instrução, em especial das dificuldades que ele experimentou. Passou-se quase um mês até esse vídeo tornar-se público. E em poucas horas, tanto a atitude dele como piloto-aluno como o próprio tema e existência do vídeo em si, tornaram-se objeto de críticas, memes, declarações apaixonadas de repúdio. Como sempre, a maneira com que falamos revela muito mais sobre nós mesmos do que o que estamos falando. E nesse caso não foi diferente.

São frentes separadas: tratemos primeiro do vídeo em si. Quem acompanha o trabalho de sete anos do Canal Piloto, para o qual tive a alegria de contribuir em várias oportunidades, entende perfeitamente o contexto em que aquele episódio foi inserido. É um portal voltado para formação, e já ajudou milhares de pessoas com o conteúdo que disponibiliza, de alunos para alunos, e não raro, de profissionais mais experientes, em todas as áreas da aviação. Portanto, querer enxergar o vídeo como uma iniciativa avulsa, com objetivo outro que não o de convidar para a reflexão sobre um tema importante – do qual falaremos mais adiante – revela ou desconhecimento de quem o faz, ou na pior das hipóteses, desonestidade.

Para falar do voo, é preciso mais linhas. Ribeirinho infringiu algum regulamento? Com o perdão do trocadilho, negativo. Sempre que um piloto não se sentir confortável ou seguro para fazer um procedimento expedido pelo controle, ele pode negar. Não precisa ser em emergência, não precisa ser em condições meteorológicas adversas, como alguns sugeriram. Faltou talvez justificar ali? Talvez, mas com a experiência que ele tinha, nenhum de nós teria falado algo muito diferente. De qualquer forma, ele negou e em seguida solicitou girar base. Depois de uma segunda pergunta, a torre o autorizou a girar base, e só então ele girou. Portanto, em termos de regulamento, nada demais. O tema do vídeo era esse: a possibilidade de o piloto negar algo que o controle solicite ou determine. Afinal, quem está no avião sempre terá o risco maior e a palavra final. Mesmo sob vetoração – quando o avião é indiretamente pilotado pelo controlador – o piloto em comando tem sim a prerrogativa de não aceitar um vetor que o coloque em risco – e não foram nem um nem dois os casos em que pilotos morreram por vetores equivocados.

E já que falamos disso, cabe aqui comentar rapidamente do papel do controle de tráfego. Algumas das críticas mais ferrenhas recebi ao dizer que “o ATC serve aos pilotos, e não o contrário”. É óbvio que a palavra “serve” aqui não tem o sentido de subserviência que quiseram lhe impor: o controle de tráfego só existe porque existe… tráfego. Sem aviões – e pilotos – controladores iriam controlar o quê? O contrário, óbvio, não é verdadeiro. Os aviões surgiram muito antes do ATC – air traffic control – e até hoje, grande parte do nosso espaço aéreo e a maioria dos nossos aeródromos não são controlados. Então, cabe ao ATC, ordenar o fluxo de aeronaves de maneira a manter sua eficiência e segurança. Os controladores são nossos olhos em terra, nos protegem, nos auxiliam, e às vezes até nos salvam. Os regulamentos preveem variadas situações em que os pilotos podem sim negar algo. E isso não faz da negativa infração ou desrespeito ao trabalho essencial do controle.

Voltando ao voo solo, me parece que faltou empatia – a capacidade de se colocar no lugar do outro. Primeiro com o instrutor que o solou: vimos incontáveis comentários de quem nunca viu as fichas do aluno, nunca deu instrução, e até de gente que nunca nem piloto foi, quanto menos instrutor. O solo acontece na primeira metade do curso inicial de piloto privado, quando o foco está em manobras básicas – que sim incluem o famigerado 3-6-0 – como decolar e pousar em segurança. Embora exista um programa, cada aluno reage de uma maneira, tem um aproveitamento específico, e assim como nenhum piloto, por mais treinado que seja, sabe de antemão como reagirá numa pane real, o instrutor e seu aluno também não têm como saber como sairá o voo solo, numa demonstração de responsabilidade assumida que tem poucos paralelos em qualquer outra profissão. Mas eu nunca fui instrutor, então, no máximo procuro não julgar o que nunca vivi.

Mas já fui aluno, e já solei. Tinha algumas horas a mais que o Ribeirinho, na época, e tive uma vantagem imensa que ele não teve: voei quase todos os dias no mês que antecedeu o solo. Para mim, o solo aconteceu até depois do que eu queria. Muitos amigos já haviam solado, e como estava ventando muito naquela semana, dois voos a mais do que o programado meu instrutor levou para me solar. É um dos dias que permanecem mais vivos na minha memória, e com muito carinho. Após três circuitos, ele desceu do avião e lá fui eu, com minha esposa segurando um rádio de mão em terra, para meu voo solo – o aeroporto em que solei não é controlado nem tem relevo próximo, então girei base quando achei que tinha, onde sempre girava com meu instrutor, e pousei o Cessna 152 em segurança, como Ribeirinho fez. Depois desse dia, tomei muitos sustos, uns maiores, outros menores. Com 60 horas, quase saí da pista na decolagem por não conseguir compensar um vento de través de apenas 8 nós, com minha mãe e esposa a bordo. Com 100 horas, aproximei para o aeroporto errado e só percebi quando a torre pediu para eu checar meus equipamentos de reporte de posição contra a posição que eu havia reportado. E assim foi, pelas milhares de horas seguintes. De vez em quando você erra, e uma das muitas barreiras existentes fazem com que o erro seja corrigido. Como disse o famoso comandante Sully, não há atalhos para a experiência. E como diz Drummond, “amar se aprende amando”. E uma das belezas da nossa profissão é justamente essa: a que estaremos aprendendo até o último dia.

Ribeirinho fez algo que muitos pilotos mais experientes têm dificuldade: reconheceu seu limite e o respeitou. Após aquele voo, feito dois anos atrás, ele reforçou o treinamento das manobras com as quais teve dificuldade no solo, e prosseguiu. Todos nós passamos por situações análogas. Só os que nunca pilotaram que não. A diferença entre um piloto inexperiente e um piloto experiente tem que ser o limite apenas, e não o reconhecimento do mesmo.

Esses tempos, vimos um pouco do pior que nossa aviação produz: pilotos imaturos criticando colegas, gente que filma seus voos e os publica criticando quem o faz, pessoas que pouco entraram em aviões como passageiros, julgando um piloto solo e suas decisões. O lado mesquinho, vil, mediano dos nossos pilotos, aflorando com força, em memes e brincadeiras que provam o quanto nos falta amadurecer como categoria e como seres humanos – o que explica muitas das mazelas da nossa profissão no Brasil. E o quanto nos falta de avião para voar, de manual para estudar. Afinal, é preciso muito tempo livre para dedicar-se a linchar um colega nas redes sociais com tanta energia.

Na minha primeira navegação solo, deparei-me com essa urna quando fui pagar pelo abastecimento do avião. Muito cedo, tive a oportunidade de aprender algumas coisas, e com muitos colegas que vi terem postura semelhante à minha – nem todos amigos pessoais do Ribeirinho – espero e prezo todos os dias para que minhas cinzas não tenham lugar nessa pequena peça de cerâmica.

 


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4 COMENTÁRIOS

  1. Muito preciso o texto!

    Confesso que brinquei com alguns amigos ao ver os memes. Hoje olhando de uma perspectiva bem mais madura vejo o quão baixo nível é esse tipo de divulgação.
    Distorceram o contexto do vídeo e tentaram denegrir imagem de aluno, instrutor e escola. Mas a real intenção do vídeo do Ribeirinho/Canal Piloto é perpétuo.
    Respeite seus limites e não os subestime que seu voo será digno de ser tomado como exemplo.

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