Se perguntarem a qualquer piloto militar português qual a situação que mais stress lhes incutia durante o curso estou certo que a resposta será unânime. Clara como água. “Emergência da manhã”.
A “emergência da manhã”, cruelmente presente ao longo da instrução de um aluno piloto, consiste na resolução simulada de uma situação de emergência hipotética apresentada ao aluno durante o briefing de esquadra. Significa isto que todos os pilotos instrutores e alunos estarão presentes, e que o “feliz” contemplado terá de resolver, de pé, à frente de todos os presentes a referida situação. É geralmente o pico de tensão do dia e todos têm uma forma muito peculiar de lidar com isso. Fosse silêncio. Fosse um tremor que não teimava em parar. Fosse mesmo um ocasional vómito.
Durante toda a minha permanência na Esquadra 101 “Roncos”, fui chamado um total de quatro vezes. No meu último dia na Esquadra, tendo já terminado o meu curso, aguardando apenas a transferência para a Esquadra 552 “Zangões” onde iria aprender a arte de voar helicópteros, dirigi-me para o briefing de esquadra com uma descontracção pouco comum. Encarava – erradamente – a minha presença no briefing apenas como uma situação passageira, uma mera acção protocolar.Terça-feira. Meio de Outubro. Dia fabuloso lá fora. Oiço aquela som típico de aviso de início de briefing. Aquele som que tanto “terror” me tinha inspirado, que tanto suor me tinha feito derramar e que tanta ansiedade provocava. Mas não. Hoje não…
Sento-me no meu lugar habitual. Dá-se início ao briefing. Este conta com um resumo da actividade aérea diária planeada, da contabilização de presenças dos instrutores e alunos tal como diversas outros aspectos operacionais. Calmo, lá permanecia no meu lugar a,confesso, pensar no que me esperava nos helicópteros.
Aproxima-se a altura da emergência e um instrutor da Secção de Uniformização e Avaliação (SUA) sobe ao palanque e inicia a exposição da emergência.
“Estamos a Flight Level 070, a aproximarmo-nos do GAIOS, em
contacto com Lisboa TMA…” e… bem, o resto nem ouvi.
Eu, calmo, de cabeça baixa pensava em rotores. Por mais alheados que estejamos do mundo exterior, existem palavras, sons ou músicas, que, ao ouvirmos, mesmo inconscientemente, nos despertam a atenção. Uma dessas – e isso aprende-se rápido na Esquadra 101 – é o nosso nome.
“Aspirante Nunes”.
Congelo. Conseguia ouvir uma mosca bater as asas.
Movo ligeiramente cabeça à minha volta e noto que todos olham para mim. Silêncio aterrador. Olho para o instrutor no palanque.
“A aeronave é do Aspirante Nunes.”
Sai-me, baixinho:
“Como, desculpe?”
“A aeronave é sua…”
Ali, naquele momento, foi como se tivesse sido atingido pelo Alfa- Pendular (comboio que liga as principais cidades em Portugal)
Escapa-me um sincero:
“Porra… mas eu já acabei isto!” -Felizmente só ouvido por aqueles que estavam ao meu lado.
“Bem. Ou vai ou racha”, penso.
Levanto-me, e com a típica descontracção de quem sabia que daqui a três horas estaria noutra Esquadra, faço o melhor que posso. E, curiosamente, foi a melhor resolução que tive durante toda a minha permanência na Esquadra 101. Coisas do destino. Lição de vida.
A aviação militar é feita destas pequenas lições. Nunca baixar os
braços, nunca descontrair, nunca facilitar. É-nos incutido na alma, gravado na nossa personalidade de aviador. Para nunca esquecer. Mais tarde, como comandante de EH-101 “Merlin” vim a dar muito valor a esta (e outras) lição(ões).
“It´s not over until it´s over”!
Ricardo Nunes
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Apaixonado desde sempre por aviação, o ingresso na especialidade de piloto na Força Aérea Portuguesa em 2005 foi consequência natural desse facto. Piloto operacional de Alouette 3 e de EH-101 “Merlin”, exerceu funções como piloto comandante de busca e salvamento a partir de 2011. Em 2013 ingressou na TAP Portugal. Natural de Lisboa, participa igualmente na organização de diversos eventos de aviação.