Como fogo em pólvora, se espalhou pelos celulares – telemóveis – na última semana o caso de um Boeing 737-500 que, durante a aproximação para o aeroporto de Vnukovo, em Moscovo, Rússia, perdeu o controle e por pouco não se transformou em tragédia. Durante uma aproximação por instrumentos, a tripulação não avistou a pista e descontinuou a mesma, conforme é previsto. Porém, entre a aproximação e a arremetida, algo saiu seriamente do controle: o avião. No meio das nuvens, sem nenhuma referência visual externa, o avião chegou a um pitch positivo de 45 graus, e lateral de 95 graus, com a velocidade caindo de 134 para apenas 100 nós, e do ponto mais alto ao mais baixo, despencando mil pés – chegando a apenas 350 metros do solo antes de se recuperar.
Para um leigo, esses números podem não significar muito. Mas para um piloto, em especial deste tipo de aeronave, eles soam assustadores. Estivesse um pouco mais baixo, e a tripulação não teria recuperado o avião a tempo. Estivesse um pouco mais lento, e não haveria nem potência nem gravidade para tirar o avião do stall – a perda de sustentação quando o ar que passa pelas asas não é mais suficiente para produzi-la. Agora, muito mais importante do que o que aconteceu é o porquê de ter acontecido.
Quando olhamos o caso específico desse voo, alguns procedimentos não seguidos à risca podem ter dado início à cadeia de eventos que resultou no que chamamos tecnicamente de upset: qualquer coisa acima de 25 graus de pitch positivo, abaixo de 10 graus de pitch negativo ou além de 45 graus de bank, especialmente não intencionais, são considerados atitude anormal, e devem ser recuperados prontamente, assim como são treinados anual ou semestralmente nos simuladores aos quais os pilotos de linha aérea são submetidos. O Boeing 737 é dos poucos jatos de linha aérea em que se deve desconectar o auto-throttle – modo de aceleração automática – quando se desconecta o piloto automático, justamente pois sua lógica pode causar momentos de inclinação de nariz – pitch – indesejáveis. Lembremos que, ainda que tenha uma performance inigualável e aviônica de última geração, boa parte dos sistemas do 737 pouco mudou desde a década de 1960.
Mas, por que a tripulação esteve em situação tão crítica – da qual tem o mérito óbvio de ter conseguido sair – e mais, por que isso continua acontecendo mais que outros tipos de incidentes e acidentes, proporcionalmente? O assunto já foi abordado aqui no blog antes, em “Quando o céu não é o bastante”. O LOC-I, ou loss of control in flight, é talvez, isoladamente, o maior desafio da indústria nos últimos anos, com eventos seguidos, muitos deles fatais, numa quantidade cada vez mais desconfortável. Afinal, o CFIT foi praticamente eliminado com equipamentos como o EGPWS – enhanced ground proximity warning system. Já as midair collisions, com equipamentos como o TCAS – traffic collision and avoidance system – tornaram-se muito raras, em especial na aviação comercial. Não só os equipamentos, mas o próprio treinamento, foram fundamentais para esse aumento considerável de segurança. Mas o LOC-I, embora num primeiro momento pareça ser contornado com o aumento do automatismo, pode estar sendo induzido pelo próprio.
Uma maneira prática de se abordar a questão da segurança é dividindo a atenção em três frentes: o homem, o meio e a máquina. No caso que abordamos no início do artigo, o meio trazia baixa visibilidade, que embora seja algo com o qual os pilotos estejam habituados, os priva de referências externas fundamentais. A máquina, ao que tudo indica até aqui, funcionava perfeitamente. O calcanhar de Aquiles recai então sobre os pilotos, geralmente o elo mais fraco, por sua própria humanidade. No artigo anterior – “O fim da profissão de aviador” – falamos de como a evolução do automatismo faz ficar cada vez mais claro que em algum momento no futuro os aviões não terão mais pilotos, mas ao mesmo tempo ressalta como o automatismo atual ainda está muito longe de entregar o nível de confiabilidade necessário para que os pilotos sejam retirados das cabines, em especial em momentos dinâmicos do voo ou situações de emergência: embora a maior parte dos acidentes seja causado por falha humana, é muito difícil quantificar quantos acidentes são evitados, todos os dias, por estes mesmo humanos.
Ainda que a manutenção do auto-throttle esteja prevista em arremetidas, pode ter sido justamente isso que começou o problema. No modo TOGA – take off/go around – o avião entrega, automaticamente, uma potência bem acima do que os pilotos costumam aplicar, manualmente. Como arremetidas, embora procedimentos normais, aconteçam relativamente pouco – justo porque os pilotos se antecipam ao máximo às circunstâncias para que as mesmas não sejam necessárias – a reação do avião pode, em algum grau, surpreender o piloto que estiver nos comandos. Essa área cinza, em que parte do automatismo está com o avião, e parte do voo manual está com os pilotos, é especialmente crítica, assim como a transição de uma para a outra – em especial de manual para automático, algo que geralmente os passageiros nem percebem que aconteceu, de tão suavemente que ocorre.
Para evitar surpresas, as companhias aéreas, em geral, criam procedimentos cada vez mais engessados no que diz respeito à utilização do piloto automático. A prática do voo manual restringe-se, na maioria dos casos, às sessões de simulador. No voo diário, em especial nos voos de longa duração, o voo manual torna-se raro, e é comum que pilotos façam um ou dois pousos num mês inteiro, às vezes nem isso. O resultado, inevitável, é a atrofia das habilidades do voo manual. E quando ele é necessário, os pilotos podem não ter o nível de proficiência adequado – e com programas de cadetes que formam segundos oficiais no sistema chamado MPL – multicrew pilot license, a questão se agrava ainda mais, pois estamos produzindo aos milhares pilotos que não têm experiência recente e nem prévia de voo manual na aeronave que tripulam. E só há uma maneira de resolver isso.
A própria NewsAvia já noticiou que algumas companhias estão considerando enviar seus pilotos para voar aviões pequenos outra vez, em busca justamente dessa proficiência. Não obstante a delícia de fazê-lo – eu sou um fã incorrigível do Cessna 152 low and slow – a solução para a perda das habilidades manuais dos pilotos de linha aérea pode ser muito mais trivial. Com esforços genuínos dos departamentos de operação das maiores companhias do mundo que ainda não o façam, o voo manual deve ser estimulado, tanto em subidas quanto descidas. Só a prática leva à perfeição, e cada modelo de avião é único, de forma que o treino nele próprio – o simulador é muito bom, mas não idêntico – se torna essencial. Como os pilotos já estão operando de qualquer forma, e essa maneira de se operar já é prevista e conhecida dos mesmos, não há solução mais barata – numa indústria extremamente sensível a custo – e eficaz. A mudança honesta de algumas linhas nos manuais de operações, a utilização inteligente das ferramentas de monitoramento disponíveis e o incentivo enfático e respaldado para a utilização do voo manual, como já vemos em algumas empresas parcial ou bastante aplicados, pode ser o antídoto para esse mal da aviação moderna.
Como dito no relatório preliminar da agência russa responsável pela investigação do incidente narrado aqui, pelo fato de os motores do 737 – assim como o da maioria dos aviões de linha aérea atuais – ficarem abaixo das asas, a aplicação de potência nos mesmos provoca inexoravelmente um momento de pitch up. Mas como dizia uma anedota que contávamos no treinamento inicial… sabe por que o nariz do avião sobe quando você dá potência? Por que você deixa.
Foto: PFD – primary flight display – do Airbus A320, instrumento que reúne informações de atitude, velocidade, altitude, razão de subida/descida, além de outras, e não à toa apelidado de “o quadrado da vida”. Ao contrário de Boeing (787/737MAX/77X), Embraer (E2190/195) e Bombardier (CSeries), a Airbus insiste num PFD relativamente pequeno para todos os seus modelos, um instrumento de papel fundamental na recuperação de atitudes anormais.
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Muito bom artigo! Parabéns Enderson!!
Muito obrigado, Mousinho!