O dilema de Caparica

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Pouco mais de um mês atrás. um acidente em Portugal chamou a atenção do mundo todo. Durante um voo de instrução, um Cessna 152 fez um pouso forçado numa praia lotada em São João da Caparica, ao sul de Lisboa, deixando duas vítimas fatais, em terra: uma criança de 8 anos e um senhor de 56. O aluno e seu instrutor saíram ilesos, e o Cessna sofreu avarias graves numa das asas, mas no geral ficou em bom estado.

O acidente em si está sendo investigado pelas autoridades, e foi escrutinado pela mídia local, com análises apaixonadas mas riquíssimas do cenário em que ocorreu, o que nos ajuda a também, entender o que se passou na cabeça do piloto que comandou o pouso – o próprio entrevistado e tendo a vida devassada, como aconteceria a qualquer um de nós em situação semelhante.

Num primeiro momento, é comum vermos pilotos sentindo-se desconfortáveis em julgar as decisões tomadas em Caparica, pois sabem que eles próprios serão julgados quando e se lhes acontecer semelhante caso, mas cabe aqui um distanciamento da questão emocional: aproveitemos que temos o conforto de nossos sofás para aprender com as decisões alheias e suas consequências. É assim, afinal, que a aviação fica, a cada ano, mais segura do que no ano anterior, pois se tivéssemos que aprender somente com nossos próprios erros e acertos, não duraríamos muito.

Ao meu ver, descontado o fator humano e da manutenção do avião, focando unicamente na operação técnica, temos duas frentes. Aprender localmente e globalmente. O que se aplicaria a Caparica que poderia ajudar a evitar acidentes futuros? E o que se aplica à operação de monomotores mundo afora que poderia ter o mesmo efeito? Primeiro analisemos localmente. Segundo noticiado, o C152 pousou em Caparica com vento de cauda, quando poderia ter, com vento de través, pousado na Cova do Vapôr – praia menor, mas mais vazia. O problema é, que sem motor, um avião só tem uma moeda de troca para ganhar velocidade: altitude. Especificamente em Caparica, como ocorre em outros corredores visuais no mundo todo, o piloto tem que manter o máximo de 1000 pés, o que restringe muito seu raio de alcance na perda de potência. Estivesse três ou quatro vezes mais alto, ele teria muito mais tempo e muito mais distância a percorrer antes de ter que efetuar o pouso nessa ou naquela faixa de areia. A questão dos corredores é sempre polêmica, mas a aviação geral vive à margem da aviação comercial, e sempre haverá lugares em que os aviões menores ficarão restritos – assim como acontece com os aviões de linha aérea ao cruzar cordilheiras ou áreas de conflitos. Menos opções exigem procedimentos mais rígidos e atentos em caso de alguma emergência, para não comprometer o nível de segurança da operação ao ponto de impossibilitá-la. Cabe às escolas de aviação, às autoridades locais, estabelecer esses procedimentos. Já globalmente, há outras coisas a se considerar. O que podemos todos aprender com Caparica? Como a velocidade do vento é descontada ou somada à velocidade da aeronave, e quanto menor a velocidade, menor serão os danos num pouso fora de uma pista, obviamente a decisão de pousar com vento de cauda não é a natural, e deve ter sido tomada por algum outro motivo que ainda desconhecemos. A escolha da praia em sí é uma boa escolha: fora um pasto ou uma estrada, é uma das melhores superfícies para um pouso dessa natureza, em especial a faixa de areia molhada e mais compactada. O pouso na água, especificamente, é mais arriscado – em especial para uma aeronave de asa alta, como o Cessna 152 – porém não precisa ser descartado: dois anos antes uma amerrissagem foi feita com sucesso na praia ao lado de Caparica com um Cessna 172, e exemplos pelo mundo não faltam.

O mantra, na perda do único motor de um avião monomotor é “best glide, look for a field”. No caso do Cessna 152, essa velocidade é de 60 nós – é a velocidade que o levará mais longe. Em segundos, você olha em volta e escolhe onde vai pousar. A maneira como você manobrará para chegar lá é treinada exaustivamente na primeira habilitação, a de Piloto Privado. Você aprende a perceber a direção do vento procurando focos de fumaça, ondas ou folhas de palmeiras,  administrar essa energia com manobras como ‘S” sobre estradas e turn around a point e power off aproaches; e a propriamente escolher esse local na clássica e autoexplicativa engine failure. Nas manobras de stall e slow flight, aprende o quão lentamente seu avião é capaz de voar antes de perder o controle devido ao acentuado ângulo de ataque. São essas ferramentas que temos à disposição numa emergência. Algumas são tão treinadas que se tornam habilidades  intuitivas, outras precisam ser lembradas e relembradas a cada voo, no briefing ou na leitura de um checklist. Treinamentos de emergência são como seguros de carro: pagamos para não usar. Mas se precisarmos, é bom que os tenhamos à mão. Tenho certeza que o piloto que pousou em Caparica pensa, muito mais que nós, no que poderia ou não ter feito diferente. Óbvio que pousar numa praia lotada não é a opção recomendada por nenhum manual, e infelizmente, ele a confirmou da maneira mais difícil – sem falar das famílias das vítimas. Mas cada um de nós só saberia se agiria diferente, se tivesse na mesma situação dele, sob as mesmas condições. Ou seja, isso já não importa realmente. O que importa é, sabendo do que aconteceu em Caparica, o que você fará quando e se lhe acontecer.

 

Foto: Uma das minhas decolagens no Cessna 152 de DeLand, Florida (KDED). Esse é o pior momento para um monomotor ter uma perda de potência: sobre a cabeceira oposta na decolagem. Um ponto tão crítico, que a frequentemente fatal tentativa de voltar ao aeroporto dali foi apelidada de “imposible turn“.  

 


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