O primeiro de muitos

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Entre o som inalterado dos motores e algum barulho de porta do toalete sendo fechada ou trolley sendo guardado, eu não estava exatamente sonhando, mas tinha uma espécie de consciência alterada pelos cochilos brevemente interrompidos. Sabia e não sabia onde estava, e tinha grande dificuldade de julgar quanto tempo havia passado. De repente, senti alguém tocar meu ombro. Era a chefe de cabine, dizendo que o comandante estava me chamando. Meu período de descanso havia terminado. Olhei para fora, pela janela do assento 2F onde passara a última hora, e vi o luar refletido em um grande e largo rio. Quando entrei na cabine de comando, escutei a controladora do centro Curitiba dizendo: “Six one two, radar services terminated, contact Resistencia center“. Ainda me recompondo enquanto o outro comandante deixava o assento da direita para que eu pudesse me sentar e ele pudesse iniciar seu descanso – estávamos em uma tripulação composta, com um piloto e um comissário a mais devido à extensa jornada – o comandante master, meu instrutor naquela etapa, após cotejar as frequências e despedir-se do centro de controle que vigia todo o centro-sul do Brasil, perguntou-me: “Quer chamar ou prefere que eu o faça?”

Agradeci mas decidi chamar eu mesmo o centro Resistencia, responsável por boa parte do noroeste da Argentina. Começava assim definitivamente meu primeiro voo internacional. Embora tenha feito toda a minha formação básica nos Estados Unidos, e a maioria das minhas horas voando na linha aérea no Brasil, eu nunca havia, como piloto, voado internacionalmente, ou seja, cruzado fronteiras internacionais voando. Sendo tanto o Brasil quanto os Estados Unidos países imensos, com territórios que chegam a ser maiores que a Europa inteira, não é nada incomum que pilotos brasileiros e americanos passem toda a sua carreira sem deixar seus países. Havia sim voado doméstico tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, e esse voo para Cordoba, na Argentina, seria então minha primeira experiência neste sentido. Tão logo me coloquei a par do voo, da distância que estávamos do destino, e fiz o primeiro contato com Resistencia, que pediu-me, no característico sotaque anglo-argentino para reportar uma posição mais à frente, peguei junto com meu instrutor o manual da Jeppesen para vermos algumas peculiaridades da operação naquele país. Aparentemente a convenção de Chicago não foi capaz de evitar que o mundo seja uma colcha de retalhos de regulamentos, unidades de medida e fraseologia, o que é uma pena.

Revistas e anotadas as principais diferenças, voltamo-nos ao procedimento de chegada em Cordoba: um arco DME que levava ao ILS da pista 18. Estávamos com sorte: o vento estava praquela pista mesmo e não seria necessária uma comum aproximação visual para a cabeceira oposta. Com o calor do verão argentino, toda a umidade da região de El Charco formava cumulus nimbus que piscavam incessantemente à nossa volta. Apesar de baixas quando comparadas às mesmas formações no Brasil, elas eram bastante maciças, e exigiam um olhar atento ao radar meteorológico e pela janela, à medida que a Lua iluminava a região pantanosa a oeste do Rio Paraná. Pouco antes da descida, o instrutor passou o piloto automático para o canal B: cabia a mim fazer o briefing da descida, aproximação e pouso na importante cidade argentina. Seria meu primeiro arco DME real num Boeing 737, e apesar da ajuda valiosa do FMC, não deixava de ser novidade. Pra piorar, formações pesadas ao longo do arco exigiriam alguns desvios. Mas, conforme o ATIS previa, saímos visuais com a pista, já estabilizados no glide-slope, a dois mil pés. Apesar da ausência de PAPI e de referências próximas – o que provocava um incômodo efeito “blackhole“, que torna difícil para os pilotos julgarem corretamente distância e altura – o pouso na madrugada cordobeza foi bastante suave. Livramos na taxiway charlie, e parados já no portão três, era hora de preparar o avião para a volta ao verão carioca. Depois de quase nove horas a bordo, pousamos no amanhecer carioca com a missão cumprida: transportar em segurança centenas de vidas.                  

Foto: a carta de aeroporto da segunda maior cidade argentina. Curiosamente, meu primeiro destino internacional como comissário, dez anos atrás, também foi Cordoba.

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