Perdendo o motor em voo de cruzeiro

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À exceção dos planadores, todas as demais aeronaves são, como sabido, dependentes de motores para voar. Portanto, poucas coisas requerem tanta atenção dos pilotos quanto o funcionamento destes. Em geral, há poucos valores para se decorar. Em boa parte dos aviões, basta que todos os parâmetros estejam na “faixa verde”. Um carro possui medidor de RPM e temperatura do óleo. Aviões, mesmo com motor a pistão, têm mais parâmetros. Aviões a jato, ao invés de RPM, usam porcentagem de N1 – compressores de baixa – além de N2 – compressores de alta, EGT – temperatura de gases da exaustão, e Fuel Flow – razão de consumo de combustível. Há outros parâmetros, que vão de quantidade/temperatura/pressão de óleo a vibração, mas são secundários.

Para cada potência e atitude, em geral, há uma velocidade correspondente. Assim como no meu carro, com 3 mil RPM numa estrada nivelada eu desenvolvo 90km/h, num Boeing 737-800, com 60 toneladas, 3.5 graus de pitch up, 90% de N1, a 40 mil pés de altitude, eu manterei velocidade de mach 0.76. É assim que se voa, por exemplo, quando você enfrenta a pane conhecida como “unreliable airspeed“, em que os dados de velocidade que os instrumentos, por algum motivo – em geral associados aos tubos de pitot – não mostram mais valores confiáveis de velocidade. E velocidade é algo vital para um avião. Abaixo de uma certa velocidade, as asas não produzem mais sustentação e a aeronave cai. Acima de uma certa velocidade, as estruturas do avião sofrem esforços maiores do que os para quais foram projetadas e se danificam. E pior, graças à densidade do ar, que diminui conforme subimos, essas duas velocidades se encontram, num ponto chamado ironicamente de “coffin corner“, ou “cantinho do caixão.” Os aviões a jato, em cruzeiro, voam bem próximos dessa altitude por uma questão de economia, com cerca de apenas 30 nós de lastro.

O momento mais crítico, porém, para se perder um motor, é durante a decolagem. Você está lento e com pouca pista sobrando, ou se já tiver decolado, baixo. A diferença de assimetria é grande, e a necessidade de potência também. Em cruzeiro, que é o assunto que abordaremos hoje, é mais tranquilo, mas exige atenção, obviamente. Toda semana acontece em algum lugar do mundo: um motor de um jato birreator apresenta um problema – para nossa felicidade, os motores são completamente independentes entre si – e é necessário desligá-lo. Dificilmente ocorre uma pane catastrófica com um motor em cruzeiro, o mais comum é mesmo algum parâmetro sair do normal e o checklist levar ao corte do mesmo. De qualquer forma, o avião que voa a 40 mil pés com dois motores, dificilmente voará na mesma altitude com apenas um. No exemplo que citamos antes, de um 737-800 com 60 toneladas, na verdade, ele teria que descer – considerando ISA + 10 graus e abaixo, temperatura típica de céus temperados e subtropicais – para 26800 pés. Na prática, provavelmente iríamos para um FL (Flight Level) próximo, o 260. A velocidade ideal de drift down – nome que se dá a essa manobra – seria de 229 nós, e gastaríamos 3 mil kg de combustível para completá-la, atingindo o FL260 com 57 toneladas.

Alguns dados o próprio computador do avião já nos dá, outros é preciso consultar tabelas específicas, mas a mecânica da manobra, no 737, consiste em desligar o auto-throttle (acelerador automático), selecionar a maximum continuous thrust (potência máxima contínua para a qual o motor foi projetado para funcionar indefinidamente), e manter a altitude até a velocidade cair para, no caso, 229 nós. Quando isso acontecer, você prioriza a velocidade e abandona o nível de voo em que estava (no caso, FL400), e desce, naquela velocidade, para o nível que a tabela sugere, o FL260. É algo feito com muita calma elegância, e com uso do piloto automático. Em aviões mais modernos que o Boeing 737NG, mesmo a aceleração automática do motor bom continua sendo usada. Para se ter ideia, no exemplo que citamos, levaria cerca de uma hora e meia da perda do motor ao nivelamento no FL260. Nesse tempo, daria para atravessar todo o caminho da Madeira a Lisboa, por exemplo.

Em seguida, o avião aproximar-se-ia e pousaria monomotor, uma das manobras mais treinadas por pilotos no mundo todo. Nada como um dia quase normal no escritório, não é mesmo?

Foto: Dentre as belas linhas do Boeing 737 Next Generation, destacam-se os dois turbofans CFM56-7B1. Potentes e confiáveis, mesmo na falta de um dos motores, o outro mantém a aeronave voando em segurança. Registro de Isaac Mamede, em um aeroporto europeu.  

 

 

 

2 COMENTÁRIOS

  1. Belo texto Enderson!
    Como bem colocado por você, o aviao voa muito tempo em driftdown speed até atingir o nivel maximo de cruzeiro monomotor. Vale ressaltar também, que apesar disso e por virtude das razões do voo economico, a velocidade de cruzeiro geralmente é muito próxima (cerca de 10 a 13kt a mais) a driftdown speed. Então, considerando uma perda de potencia subita em um dos motores durante voo nivelado, o arrasto vai drenar a velocidade para baixo da driftdown speed em média em até 7 segundos. Isso quer dizer que se as açoes nao forem tomadas rapidamente, será necessario perder altitude rapidamente para recuperar a velocidade, e essa altitude perdida pode ser preciosa dependendo da situação hehe. Abraço! Parabéns pelo texto!
    Orsini

    • Oi, Orsini! Muito obrigado pelo comentário e pela contribuição! Muito bem colocado, por isso é tão importante selecionar a MCT o mais rápido possível, para que a manobra de drift down seja feita com mais tranquilidade e ganhando mais distância. Grande abraço e bons voos pra nós, sem necessidade de drift down, né?

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