O relógio local marcava pouco mais de oito da manhã. De uma estranha maneira – em nada condizente com meu regime de sono na véspera – eu sentia como se fosse aquilo mesmo. Um Boeing 747 correu na pista com sua costumaz altivez, seguido de um A320 autorizado a decolar pouco depois. Mal o Airbus começou a corrida, fomos instruídos a alinhar e manter na pista 19 esquerda. Uma cumulus nimbus gigantesca se erguia à nossa frente iluminada pelo sol acima do mar. “Eight two seven, clear for take off, runway one niner left”. O alcance do meu navigation display pegava claramente a nuvem de tempestade, mas o radar meteorológico da aeronave mostrava que ela estava confortavelmente após o ponto onde deveríamos curvar pela saída padronizada PASTO 1J, e só impressionava mesmo pelo tamanho e por ter acordado tão cedo: bem da verdade, chovera em Bangkok a noite inteira. Solicitei ao comandante que aplicasse a potência de decolagem e, conforme o procedimento padrão, li as mudanças de modo no flight mode annunciator – a parte dos nossos instrumentos que reflete os modos do automatismo do avião: a decolagem seria manual, mas a aceleração dos motores e os comandos de velocidade através da inclinação do nariz seria automática. Quando atingimos a velocidade de rotação, puxei gentilmente o manche, erguendo as quase duzentas toneladas em direção aos céus. No agitado e confuso espaço aéreo da capital tailandesa, achei por bem conectar o piloto automático logo depois e passar, então, a pilotar a aeronave de forma mais precisa porém indireta.
Sobrevoamos por alguns minutos a gigantesca cidade enquanto ganhávamos altitude, e logo o agito dos níveis inferiores deu lugar aos chamados esparsos do controle de Yangon, enquanto sobrevoamos velozmente as matas da misteriosa Myanmar, e depois a vasta Baía de Bengala, com ocasionais desvios. Mais algumas horas e vencemos a Índia e o mar da Arábia. Inicialmente a 41 mil pés, e depois a 43 mil, vimos inúmeras aeronaves que cruzaram nosso caminho – o que nos dava uma vaga ideia de como seríamos nós vistos de fora. Pouco mais de cinco horas e meia após a decolagem, surgiu à direita a fascinante e remota região montanhosa da província de Hormozgan, ao sul do Irã, enquanto um cordial controlador nos dava às boas vindas. Tão logo deixamos a histórica ilha de Hormuz, onde ainda hoje se preservam as ruínas de um forte português de cinco séculos atrás, também à direita, iniciamos a descida para nosso hub, no coração do Golfo Pérsico. Eram onze da manhã, atravessando quatro fusos de de leste pra peste conseguimos esticar nosso dia, num dos poucos modos de viagem no tempo já possíveis aos humanos. Somados aos seis fusos que atravessarei nas próximas horas, meu final de semana terá 58 horas entre a meia noite de sexta para sábado na Tailândia e a meia noite de domingo para segunda no Brasil. Mais uma das mágicas que a aviação faz, talvez ainda menos compreendida do que a do voo em si.
Foto: amanhece em Bangkok, Tailândia. Para eles, nós somos os antípodas: suas solas estão viradas para nossas, onde é noite. O mundo é uma questão de perspectiva.