Sim. Foi muito perto. Perto o suficiente para eu ouvir o barulho altíssimo do motor acelerando, o baque surdo do choque, sentir o calor da explosão no meu rosto e ver o enorme cogumelo de fogo e fumaça que se elevou no céu. Perto o suficiente para fazer meu coração parar de bater momentaneamente, para sair correndo até o local e chegar lá três minutos depois do acidente, antes da polícia e dos bombeiros, perto e tão perto a ponto de quase ser atingido por pedaços do prédio da TAM Express na tentativa inocente e ao mesmo tempo irresistível de ajudar as vítimas, perto para fugir do calor do fogo, para gritar para as pessoas presas nos andares superiores terem calma, para voltar para a casa impotente e se sentindo péssimo por não ter podido ajudar, perto o bastante para ter que sair às pressas do apartamento diante do pedido de evacuação dos bombeiros após algumas explosões fortíssimas, de ter que esperar horas para a polícia autorizar a volta, para ter seu edifício invadido por várias redes de tv. Perto demais, para estar cansado e não conseguir dormir com o barulho dos helicópteros e os gritos dos bombeiros pela madrugada afora, perto e tão absurdamente perto a ponto de ter entendido, de ter percebido, mas não ter aceitado. Antes que perguntem, eu poderia sim ter fotografado e filmado tudo, provavelmente e felizmente, nunca mais um avião lotado irá despencar do meu lado e eu ficarei vivo para contar. Mas eu não quis. É um peso muito grande. Como disse um chefe de cabine colega meu momentos após o acidente… “Por que eu tinha que ver isso?!” É a nossa parte da sentença. Ver com olhos de tripulante, sabendo e imaginando a dor dos pilotos ao verem que nada poderiam fazer, dos comissários ao perceberem que o barulho e o comportamento da aeronave não eram nada do que tinha sido nos milhares de pousos que haviam feito anteriormente. Ainda é cedo para dizer as causas, se o automatismo do Airbus o levou à desgraça mais uma vez, se o essencial groove até agora inexplicavelmente não instalado na pista foi determinante, se houve falha da tripulação. Certamente, não será um fator isolado. Numa pista sem uma avenida no final, talvez ninguém tivesse sequer se machucado. Mas a vida é assim mesmo, e nós, com mais um nó na garganta, temos que continuar voando num país onde definitivamente não temos as condições ideais para fazê-lo.
A dona do par de tênis fotografado aqui momentos antes e a menos de cem metros do acidente foi minha guardiã. Não me deixou cristalizar, não deixou eu me machucar, me deu a calma que eu precisava para adormecer apesar das sirenes, da fumaça, do bizarro que é ver duas centenas de pessoas morrendo instantaneamente na sua frente.
Apesar de boa parte dos meus inúmeros amigos estarem voando ontem e outros tantos serem gaúchos e freqüentadores assíduos da super ponte entre Porto Alegre e Congonhas, ontem todos foram poupados. Talvez eu tenha que agradecer pela vida deles, e talvez mesmo pela minha, que anda tão perfeita e mesmo estranhamente próxima da morte e intensamente vívida. Mas não sei, realmente, se há alguém para escutar. Se houver, o fiz ontem. Na escuridão da noite, no silêncio do aconchego dos braços dela, que hoje teve o lisonjeio de dizer que eu, que sempre assumo ser apenas um garoto perto dela, fui ontem um homem.
São Paulo, 18 de julho de 2007.
Foto: o par de calçados, postos às pressas, para acudir o local do impacto, a 50 metros da nossa janela. O dia 17 de julho de 2007 será para sempre lembrado, com seus sons, temperatura e tristeza. A dona do tênis branco, hoje casada comigo, tinha parado o carro no local onde o Airbus A320 iria se chocar apenas 50 minutos depois. O Brasil melhorou sua estrutura para a aviação, e eu, na época comissário, e hoje piloto, tenho respeito e gosto por operar na pista 35L de Congonhas. Mas a lição, embora aprendida, não foi completamente assimilada. Congonhas continua não perdoando erros, e o concreto poroso, a extensão a la Funchal, nada disso falado à época, foi feito. A operação, essa sim foi restringida, o que adicionou certa margem de segurança. É impossível não lembrar do acidente cada vez que se pousa lá. Melhor assim, ele fica mais improvável – e a memória dos que nele faleceram mais fortes – sempre que lembramos dele.