Na verdade, como bem lembrou o blogueiro e piloto Raul Marinho, “não existe polêmica”, pois está muito claro no regulamento brasileiro – no americano, e certamente no europeu – a obrigatoriedade do voo e das navegações solo durante a formação do piloto privado. No entanto, recentemente, o instrutor de um aeroclube paulista oficializou, em vídeo, a prática bastante comum no Brasil, de não permitir que os alunos voem sozinhos mais do que o circuito de tráfego. Com argumentos como “é chato voar solo”, e de que seria mais seguro não fazê-lo, o vídeo surpreendentemente justifica o descumprimento do regulamento que trata da instrução de Piloto Privado, onde são necessárias pelo menos dez hora de voo solo, sendo solo aquele voo em que o piloto é o único ocupante da aeronave – que obviamente, são as únicas horas em que um aluno de piloto privado loga como piloto em comando, uma vez que ele ainda não possui a licença ou certificado que lhe dê tal privilégio.
Essa discussão toda, que gerou comentários apaixonados na internet, principalmente dos contrários ao tal “solo assistido”, jabuticaba que significa voar solo, mas com o instrutor do lado (?), lembrou-me dos meus voos solo da época do PP. Desde as 12 horas de voo que eu já estava no jeito pra solar, mas a primavera da Florida não estava ajudando, e com ventos fortes, meu instrutor achou melhor treinarmos mais alguns dias. Por fim, com 17 horas, fiz meu primeiro voo solo. Conforme reza a tradição na FAA, tomei um banho de água, meu instrutor cortou a parte de trás da minha camiseta, escreveu o feito nela e a prendeu na parede da escola. Eu havia finalmente chegado naquele ponto tão sonhado do curso, quando você se reconhece capaz de decolar e pousar um avião sozinho sem se matar nem matar ninguém embaixo.
Mas faltavam ainda as navegações. Por enquanto eu era uma mosca de padaria, não ia mais que dez milhas distante do meu aeroporto base, o municipal Sidney H Taylor Field, em DeLand, uma pequena cidade uma hora a nordeste de Orlando. Era chegada a hora de fazer o que a maioria dos pilotos faz por inerente: voar para longe, ligar lugares através dos céus. Três dias após meu primeiro voo solo, eu e meu instrutor empreendemos nossa primeira navegação, para Gainesville, sede do famoso time Gators. Contornando a grande MOA – Military Operations Area – por Palatka, ida e volta levaram quase duas horas e meia. No dia seguinte, o segundo voo de reconhecimento, para a sede de Patty Wagstaff, cidade mais antiga dos Estados Unidos, a bela Saint Augustine. Como no dia anterior, o grande desafio pra mim foi lidar com o ATC. Como DeLand não era controlado, ainda era desafiador entender e responder aos comandos das torres de controle, perceber quando eu estava em espaço aéreo controlado, e que tipo de espaço era aquele. Após mais alguns dias de manobras e outros dois voos solos locais para praticar pousos e decolagens, chegou a hora de encarar o desafio sozinho.
O primeiro voo para Saint Augustine foi tranquilo. Fora alguma confusão com as taxiways na chegada, e o “task saturation” comum à novidade de fazer tudo sozinho, o voo transcorreu sem grandes percalços. Para dois dias depois, o prato era a bem mais distante Gainesville. Como de costume, ao planejar o voo, coloquei na navegação em que acompanharia velocidades, tempos e consumo, as radiais que poderiam me guiar caso eu me perdesse na infinidade de lagos e campos da Florida. E quando você voa pra um local que não conhece sem um GPS e moving map, isso é bem plausível de acontecer. E não deu outra: quando decolei de volta de Gainesville, um comando da torre de controle para que eu livrasse o eixo da pista principal do aeroporto para dar espaço a um 737 que se aproximava, tirou-me da zona de conforto, e em poucos minutos a paisagem começou a ficar estranha. Sintonizei o VOR de Gainesville, coloquei o course de saída que havia plotado na navegação ainda em casa e minha surpresa foi imediata: eu estava ao norte e me afastando rápido da direção em que deveria estar indo. Rapidamente corrigi o curso, reinterceptei a radial e sob o controle de Jacksonville, quinze minutos mais tarde vi, com alívio, a usina de Palatka surgindo na minha proa. Por pouco eu não havia entrado em outra área militar. No caminho de volta, mais uma instrução do ATC às pressas, para evitar tráfego, mas sem mais nenhum susto, surgiu no horizonte após mais de uma hora e meia de voo meu aeroporto base – visão que os pilotos têm como especial, sempre.
Dois dias depois, fiz a grande navegação do PP, que pela FAA deve ser de pelo menos 150 milhas náuticas, e incluir pelo menos dois aeroportos controlados. Foi fácil: DeLand-Gainesville-Saint Augustine-DeLand. Piece of cake, as figurinhas, embora repetidas, completaram o álbum. Eu faria ainda mais uma navegação no PP, mas noturna e com o instrutor, outro requerimento da FAA. Fora isso, viria a visitar os aeroportos vizinhos de Ormond – onde tive meu primeiro “catrapo”, e Flagler. Mas graças a confiança que só o voo solo pode dar, estava pronto para, durante o curso de IFR (curso de voo por instrumentos), fazer o tão esperado “time-share“. Divindo a cabine com colegas do curso, e não instrutores, voei para três dezenas de aeroportos na Florida, Geórgia, Carolina do Sul e Alabama, um período inesquecível e inigualável, mesmo hoje, mais de mil horas depois. O time-share é o meio termo perfeito entre o solo e o solo assistido: você está voando com alguém tão inexperiente quanto você, mas não está sozinho. Porém só faz sentido nas “horas visuais” do PC (curso de Piloto Comercial) – na FAA, o time-share chega a durar mais de cem horas para o cumprimento de requerimentos. O solo é sagrado, nele só você pode tomar as decisões, e ninguém aprende a tomar decisões com o instrutor do lado. A maioria de nós voará muito pouco solo de novo, e essa experiência é insubstituível na construção do profissional que você virá a ser. Como bem lembra o representante de uma escola americana e piloto William Romualdo, não deixe de escolher uma escola onde você poderá fazê-lo. No Brasil, embora o regulamento preveja essa prática, infelizmente são poucas as escolas que o cumprem.
Foto: eu caminhando pelo pátio de DeLand em 2012 para assumir o Cessna 152 que seria meu parceiro na empreitada de atravessar a Florida sozinho.