O último final de semana foi bem agitado na América do Sul. Com uma frente deslocando-se velozmente na direção nordeste, num dos últimos resquícios de inverno a invadir a primavera, vários voos do Cone Sul foram afetados. E assim, como a borboleta que bate as asas no Caribe e provoca um tufão em Taiwan, o melhor voo da minha escala de setembro foi para o brejo.
Eu fecharia o mês com um pernoite na simpática segunda maior cidade da Argentina, Córdoba. Porém, no dia anterior, um forte nevoeiro fez com que o voo para Córdoba fosse parar em Rosário. Portanto, no dia seguinte, não haveria ninguém para trazer o avião que a minha tripulação estava levando, e dessa forma, o que era pra ser uma perna tranquila de ida, virou um longo bate-volta. Aliás, dois bate-voltas. Iríamos no sábado e chegaríamos de volta domingo de manhã, e depois iríamos de novo domingo à noite e chegaríamos segunda-feira de manhã.
Assim foi feito. Decolamos do Rio de Janeiro já esperando formações pesadas na chegada à Córdoba. Após três horas de voo tranquilo, já na descida precisamos fazer vários desvios. As cumulus nimbus que se formam na região alagada entre Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina, são baixas porém compactas. O radar meteorológico do avião mostrava várias áreas de precipitação pesada, e com algum esforço, chegamos a Córdoba. O vento soprava irregular, mas de proa para a pista principal, com um ILS, porém sem PAPI, um auxílio visual que usamos para saber se estamos na rampa correta. Mas como o glide slope nos leva na mesma rampa, e a visibilidade era bastante boa, a aproximação foi tranquila. No entanto, as formações com as quais cruzáramos na descida se intensificavam e precisaríamos cruzá-las na volta.
Saindo, com curva à esquerda, precisamos analisar as imagens do radar para decidir. O lado sul da formação parecia mais promissor. Parecia. Em meio a um intenso fogo de Santelmo, raios e turbulência leve a moderada, a cada feixe de radar, as áreas mais críticas da formação pareciam mudar de lugar – na verdade, estavam mesmo se desenvolvendo rapidamente, como um labirinto onde as paredes estivessem se movendo – e o que é pior, todo o sistema se movia a 80 nós a caminho do Brasil. Ou seja, a tempestade que atravessávamos buscando os ecos mais fracos se movia na mesma direção que nós, a quase um quinto da nossa velocidade. Fomos quase até Rosário desviando, até que conseguimos, depois de muita coordenação com o Córdoba e Ezeiza, entrar no Centro Curitiba já fora daquele sistema. Pousamos no Rio de Janeiro numa manhã ensolarada, que em nada lembrava os céus bravos del Chaco. Quase dois dias depois, o mesmo mau tempo provocou estragos em Minas Gerais e causou quatro arremetidas seguidas no aeroporto central do Rio, o Santos Dumont. E eu estava exatamente lá, pois a escala mudou de novo e minha segunda-feira começou e terminou no SDU.
Essa é a tal “verdade camponesa”, da qual Exupéry nos fala em “Terra dos Homens”. A maioria das profissões perdeu esse embate, essa interdependência dos humores da Natureza. Nós, os pilotos, somos herdeiros de uma longa tradição. Uma tradição que remonta aos primórdios da nossa espécie até. Nossas cidades são abrigos artificiais, onde é dia quando queremos, é quente ou frio conforme desejamos. Lá fora não é assim. Lá em cima, nos ares, mares, nos desertos e florestas, o céu é estrelado, o Sol implacável, o vento uivante, a Lua brilhante. É um privilégio lidar com eles. O respeito que criamos pela beleza do Universo apenas cresce, quanto mais nos maravilhamos com esse planeta que, em nossa nobre missão, nos cabe unir.
Foto: o espetacular fogo de Santelmo, efeito das enormes cargas elétricas dentro das nuvens sobre o avião que as atravessa, aqui registrado pelo talentoso fotógrafo Christiaan Van Heijst, piloto de 747.