De volta da era do jato

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Nestas férias tive uma oportunidade única – que eu pelo menos ainda não tinha conseguido conciliar: juntar num curto espaço de tempo duas maneiras diferentes de voar. Para resumir bem, a maior parte da minha experiência como piloto é ou de aviões monomotores a pistão de passo fixo ou de aviões a jato de mais de quarenta toneladas. No meio termo, tenho cerca de cinquenta horas de multimotores a pistão e infelizmente nunca voei um avião turbohélice para saber como é. De qualquer forma, as minhas duas grandes escolas na profissão de piloto ocorreram em momentos distintos, e após algumas centenas de horas voando Cessnas 152 e 172, vieram muitas outras centenas de Boeing 737 Next Generation. Como meu último artigo na NewsAvia demonstrou sem nenhum pudor, minha paixão pelos Cessninhas é indelével, e como minha relação com as escolas de voo e seus alunos ainda é bastante forte, constantemente sou perguntado sobre as diferenças na pilotagem de aeronaves tão distintas como os jatos de passageiros e os monomotores a pistão. Tendo podido alternar ambas no espaço de poucos dias, agora tenho uma imagem mais clara destas diferenças. É sobre isso que falaremos hoje.

A primeira, óbvia, é que no Cessna eu voo na esquerda e no Boeing eu voo na direita. Quão diferente isso é? Bom, no começo é esquisito, mas depois fica natural. Bem mais natural do que é dirigir na direita – entrar numa rotatória na Escócia foi uma das experiências mais desafiadoras da minha vida. Por mais destro ou canhoto que você seja, o ajuste fino tanto para potência quanto para controle dos comandos de voo vem mais cedo ou mais tarde, e no fim das contas, o que você fizer mais, vai fazer melhor, como quase tudo na vida.

O segundo ponto é o processo decisório. Ventos de través de mais de 12 nós  fazem o pátio de uma escola de aviação lotar. Chuvas, tetos baixos, tudo isso inibe os voos das aeronaves leves: sem dispositivos anti e de degelo, com baixas velocidades de cruzeiro, e com um motor só, fica claro que é preciso bem mais que um plano IFR para enfrentar certas condições meteorológicas que na linha aérea seriam apenas “mais um dia no escritório”.

Terceiro: a performance. Existe muita diferença entre contar com 160 HPs e com 54 mil libras de empuxo, certo? No que tange ao tempo de voo, definitivamente. Trajetos que levam horas de Cessna podem ser cumpridos em algumas dezenas de minutos por um jato. Mas os cálculos e conhecimento da capacidade do seu avião são similares: ambos têm limites, e a decolagem em ambos aproxima bastante a aeronave destes limites: não há tanta margem assim tanto num quanto noutro quando o assunto é decolagem. A diferença óbvia é que “quem tem dois, tem um; já quem tem um…” Mas isso acaba simplificando também. Se um jato perde um motor na decolagem, há uma série de medidas a serem tomadas: você vai manter o controle do avião e não fazer nada além de recolher o trem de pouso e talvez pedir ao colega a seleção da potência máxima disponível no motor bom até a altitude de aceleração. Uma vez nesta altitude – que começa em 400 pés pelos regulamentos, mas vai da companhia ser mais conservativa, como por exemplo 800 ou 1000 pés – você pede para o colega selecionar a velocidade de flaps up, começa a recolher os flaps e combater a pane: se for fogo no motor, é nesta altitude que começarão as ações corretivas, como tirar a potência, e eventualmente cortar o motor e acionar os extintores de incêndio. Já se for um apagamento do motor ou dano severo, causado por pássaros, por exemplo, é hora de cortar o motor. Após isso feito, com a aeronave já na configuração flaps up, é hora de pedir a seleção de maximum continuous thrust  – potência máxima com a qual o motor pode funcionar indefinidamente – e para que o colega confirme, junto ao computador de bordo, para a perda daquele motor, qual a melhor velocidade de subida e até que altitude vocês podem subir. Num 737-800 com 150 passageiros decolando prum voo de uma hora, isso significa algo próximo de 220 nós indicados subindo a bem mais de 20 mil pés. Como é de se esperar numa tripulação múltipla, as tarefas alternam-se entre os pilotos, e já com o piloto automático conectado e com a situação controlada vem o momento de comunicar-se com orgãos de controle, comissários, passageiros e a própria companhia para decidir qual a próxima ação: geralmente o pouso num aeroporto próximo com pista grande o suficiente – mesmo nos piores cenários, um Boeing 737NG dificilmente precisa de mais de 1600 metros de pista para parar. É uma emergência, mas não chega a ser um desastre, e várias vezes por mês, no mundo inteiro, aviões comerciais executam tal manobra com ótimas margens de segurança, ao ponto de passarem despercebidos pela maioria dos jornais.

No Cessna 172, tendo um só motor, por pura falta de opção, a decisão é bem mais simples: assim que você perde o motor, está caindo. O mantra é “best glide, look for a field“. Você mantém o nariz para cima até que a velocidade chegue a 61 nós, e dali em diante, cede para que ela se mantenha. Logo após a decolagem, a melhor opção é pousar praticamente em frente, não importa muito quão hostil seja o chão. Já com mais altitude, há mais opções, e numa downwind costuma ser possível voltar confortavelmente para a pista. Em rota, um Boeing vai para uma altitude mais baixa. O Cessna ganha uma boa gama de opções, especialmente se estiver com referências visuais do solo. De qualquer forma, pousar um Boeing em qualquer lugar que não seja uma pista costuma resultar em perda de vidas. Já o Cessna, se sai bem melhor em campos e estradas do que o senso comum leigo possa sugerir.

E como é pousar um e outro? Qual a diferença? Num voo sem surpresas, aí reside a maior diferença. O Boeing 737 vem mais depressa, há menos tempo para correções, mas voando apenas 30% acima da velocidade de stall, assim que você decide tocar no chão, ele toca. Basta colocar na atitude correta e tirar o motor – o que costuma acontecer entre 30 e 10 pés de alitude. Já o Cessna, aproximando-se da pista a quase o dobro da velocidade de stall, exige que se lhe tire motor bem mais cedo. Como, ao contrário do 737-800, não há praticamente o risco de bater a cauda, além do que a atitude natural do avião já é levemente com o nariz em cima, o segredo é voar perto o suficiente do chão por um tempo longo o bastante para que a velocidade drene e ele toque pouco antes ou pouco depois do alarme de stall. Essa transição não é trivial, e dos pousos que fiz nessas férias, poucos foram como eu gostaria. Acrescente o torque e o p-factor que o Boeing não tem, e uma dança lateral durante o flare torna o pouso ainda mais embaraçoso.

Mas entre mortos e feridos, salvaram-se todos. Felizes dos que podem alternar mais frequentemente entre um e outro. São estilos quase opostos de voo. Se você não escolhe com quem, pra onde e a que horas vai voar, é trabalho. E um Cessninha alugado nas férias, ainda mais sem FOQA nem flight director, é o exato oposto do dia a dia na linha aérea. De resto é aquilo, o avião só cresce para trás: seu metro quadrado na cabine de comando será sempre seu metro quadrado, não importa se sua aeronave tem 700 ou 70.000 quilogramas.

Foto: Um Cessna 172 cruza os céus da Florida no fim da primavera. Como já dizia Bon Jovi, “with a sixpack and a radio” a diversão está garantida.

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