Fábrica de heróis

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A mídia precisa vender. E para vender, ela reproduz um dos mais básicos comportamentos dos animais sociais como nós somos: ela rotula. É preciso dividir o mundo: preto e branco, cima e baixo, rico e pobre, bandido e mocinho, heróis e culpados. Simplificando conceitos, as massas são atraídas com mais facilidade, e no caso dos heróis e culpados, a ânsia de ter modelos, para o bem e para o mal, é alcançada sem esforço.

Mas a vida, claro, é muito mais caprichosa que isso, e as nuances do mundo real muito mais rebuscadas. E na intrincada experiência humana de decisões, pressões, dilemas, a simplista dicotomia se revela tola e ingénua. E não foi diferente no caso do Boeing 737-700 que sofreu uma falha não contida em um dos seus motores semana passada. Não tivesse a tripulação lidado tão bem com a situação, rapidamente achar-se-iam os culpados. Porém, como o fizeram, profissionalmente, tornaram-se heróis. Em especial, a comandante Tammie Jo Shults – afinal, na cultura ocidental há pouquíssimo espaço para coadjuvantes, por mais essenciais que sejam. A sedução da dicotomia é muito forte: se esquece a tripulação, o controle de tráfego aéreo, os bombeiros no aeroporto. Vamos achar um e erijamos uma estátua em seu nome – quadros por vezes são mais democratas, mas estátuas, raramente.

A aviação é uma engrenagem complicada, que depende de muitas pessoas. Um voo comercial não sai sem o trabalho dedicado de dúzias de pessoas. Por mais solitária que seja a posição do comandante – e é preciso que a responsabilidade e a palavra final seja de apenas um, por uma questão prática dada a rapidez que certas decisões denotam e, infeliz mas naturalmente, de culpabilidade legal – o sucesso ou não de um voo depende de equipes inteiras, que incluem comandantes, primeiros-oficiais, chefes de cabine, comissários, e claro, todos em terra que assistem o voo.

O segundo ponto em que classificar Tammie como herói falha terrivelmente é que ela não fez mais do que a obrigação. Sim! A obrigação de pilotos é alta mesmo! Somos exaustivamente treinados, avaliados, testados, durante toda a nossa carreira, para que possamos não deixar um voo sair da normalidade no que nos tange controlar, e para que, se algo que não possamos controlar sair, nós possamos manter o voo em segurança apesar disso.

Convém, no entanto, reconhecer a raridade do evento que a comandante Tammie Jo Shults e o primeiro oficial Darren Ellisor enfrentaram. Somos treinados todos os anos em falhas de motor e despressurizações, mas nunca na duas coisas ao mesmo tempo. Por um motivo simples: é extremamente improvável que ambas aconteçam no mesmo voo. Primeiro porque falhas de motores costumam acontecer em baixas altitudes – quando a pressurização não é um problema – geralmente por ingestão de pássaros. Segundo, porque mesmo que se tenha uma falha catastrófica de motor, por projeto – e como as estatísticas confirmam – ela deve ficar restrita ao motor propriamente. No caso da CFM-56 da semana passada, a carenagem do motor não foi capaz de conter os estilhaços produzidos pela soltura da blade e estes atingiram a asa e a fuselagem, levando à óbito uma passageira sentada à janela, o que obviamente pesou muitíssimo sobre a gravidade do acontecimento. A indústria, na figura dos órgão investigadores, reguladores, fabricantes e operadores, já está agindo para que, um acidente que já havia acontecido em 2016 e se repetiu agora, não volte a ocorrer. O motor CFM-56 é talvez o mais popular do planeta, com certamente mais de uma dezena de milhares voando todos os dias. Então, mesmo que nada se fizesse, o histórico deste motor já é excelente, e a tendência é que fique ainda melhor. Outros motores já tiveram falhas não contidas, mas como dito antes, são raríssimas.

Mas a real motivação deste artigo é a reflexão proposta pelo texto do pintor e piloto – talvez o contrário – Garry Kravit. Tammie é sim uma profissional exemplar, com histórico prévio de passagem honrosa como piloto militar – e toda experiência é válida, e essa certamente lhe foi – mas ela não é exatamente uma exceção. Ao imputarmos um ar de heroísmo – ou de culpa, se fosse o caso – a quem apenas fez seu trabalho – ainda que muito bem feito – estamos relegando às sombras atores essenciais ao desfecho de um evento, o que é no mínimo uma grande injustiça. Tammie, Sully, Schornstheimer, Haynes, e tantos outros ao longo de um século de História do transporte aéreo, incluindo a chefe de cabine Lee Yoon-hye, que mesmo ferida, carregou pessoas mais pesadas que ela própria nas suas costas e foi a última tripulante a deixar seu Boeing 777 em chamas, no canteiro do aeroporto em San Francisco em 2013, fizeram o que foram treinados para fazer, e não o fizeram sozinhos. Mas muito mais importante: o que fez com que parecessem heróis, foram as circunstâncias a que foram expostos. Profissionais como eles são a norma, não a exceção. E assim como Kravit observou, eu também sou muitíssimo honrado de dividir a tripulação com tantos profissionais grandiosos, que não bastasse o sacrifício que já fazem ao abrir mão dos seus para aproximar desconhecidos diariamente, quando o dever os chama, são capazes de muitíssimo mais. Você não teria orgulho de voar com eles? Eu tenho.

Foto: um colega por enquanto anónimo está sentado ao lado em um Boeing 737 Next Generation. Basta uma sequência de eventos para revelar seu profissionalismo e elevar o borrão das lentes do talentoso piloto e fotógrafo Christiaan van Heijst ao estrelato. Torcemos para passarmos a carreira anónimos, mas se ficarmos conhecidos, que seja de uma forma positiva. Tammie agradeceu e humildemente declinou do título de heroína tão logo teve a oportunidade de falar à imprensa, justo como se espera de uma grande comandante.

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