O meu último voo no Boeing 737

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Como tantas vezes antes, ele ficou alto na rampa. Um avião que embora projetado meio século atrás, com suas atualizações tornou-se imbatível na economia de combustível e performance. O efeito colateral é ser “liso”, como dizemos. “Gear down”, pedi ao comandante. Junto com o speedbrake, que já estava acionado, o esguio Boeing 737-800 SFP, após cruzar por duas horas e meia o sul do continente a mais de mil quilômetros por hora, agora reduzia sua velocidade para cerca de duzentos nós. Flaps one, approach armed, flaps five. Recolhi o speedbrake. Agora com o trem embaixo causando um enorme arrasto, rapidamente o avião se adequou ao perfil da aproximação. Localizer captured, glidslope captured, tão logo passamos EGBAT. Segui configurando o avião, e a mil pés passamos estabilizados. Diferente de tantas outras manhãs, o Rio de Janeiro amanheceu com uma névoa opaca. Há alguns segundos já dava para ver as luzes anteriores à pista, “ALS in sight”, mas só abaixo de 200 metros de altura pude divisar a pista 15 inteira, paralela à Linha Vermelha.

Estava claro, mas não muito, e sob aquela luz cinza, pouco antes das seis da manhã, com dez nós de través e um leve componente de cauda, reduzi os dois motores CFM56-7B1 de 27 mil libras de empuxo cada para idle. Com o avião de 60 toneladas querendo voar mas já a centímetros do chão, cedi o nariz, enquanto com o pedal o mantive no eixo da pista. Toquei, abrir os reversores, trouxe suavemente o trem do nariz para o chão e desacelerei com o autobrake em 3, acionando após algum tempo o freio manual para livrar na taxiway Echo. “Sixty knots”, disse o comandante. Logo após, fechei as conchas dos reversores, e a cerca de trinta nós, falei “you have controls?” no que o comandante já com controle positivo dos pedais, respondeu “I have”. Acabava assim meu último voo como piloto do Boeing 737, um avião com o qual sonhei a vida toda, desde a infância. Foram mais de 500 pousos, somando exatas 1747 horas e 6 minutos de voo neste icônico jato comercial. Por um lado é bastante, mas ao longo dos anos, esse tende a se tornar um número pequeno de horas – o de pousos vai custar bem mais a ser igualado, pelo perfil da operação do 737, em etapas curtas e médias – mas ele sempre será meu primeiro jato, meu primeiro avião multicrew, e a aeronave comercial a jato mais vendida de todos os tempos.

Dos 8 mil produzidos, tive o privilégio de voar mais de cem exemplares diferentes, alguns com duas décadas de uso, outros com menos de seis meses. Como toda máquina complexa, num ambiente dinâmico, aprendi muito nesses três anos, mas certamente tinha muito a aprender ainda. Desde detalhes da lógica do seu avançado automatismo até o fato de que velocidade, inércia e ângulo de ataque não estão sozinhos. Só quem teve o privilégio de realizar um sonho, como eu realizei, tem noção do valor do mesmo. Agora, o guardião dos cabos e polias ficará no passado: talvez essa tenha sido a última aeronave de linha aérea sem fly by wire que voei. E a sensação de controlar um avião com até 79 toneladas de peso máximo de decolagem diretamente, com a ajuda apenas do sistema hidráulico, é algo que muitos pilotos nunca vão saber, pois o 737 é uma exceção. Eu não poderia ter sido mais afortunado. Voar o avião que sonhava desde criança. Obrigado, Boeing 737 Next Generation. Pelos 9 anos de galley e passarela, claro, e por essas mais de mil etapas como segundo em comando no assento da direita com a melhor vista que eu poderia ter, desde aquele poente decolando de João Pessoa, no dia primeiro de março de 2015. Serei eternamente grato.

Foto: Christiaan van Heijst nos presenteia com a bela imagem do flight deck do Boeing 737NG em meio às nuvens. Meu escritório pelos últimos três anos. Como bem definido por Gianfranco Beting, o “DC3 da era do jato”. 


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