Memórias do Comandante Marin de Castro

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Foi com pesar que recebi a notícia que o Comandante Marin de Castro nos deixou aos 84 anos. Conheci-o em 2007 quando foi meu instrutor de voo no Aeroclube de Portugal. Pretendia tirar a licença de voo privado apenas por diversão, mas tive a sorte de aprender com um verdadeiro Comandante. Por Comandante não se entenda apenas horas de voo na caderneta, mas sim uma postura profissional, de rigor e de liderança. Nessa altura o Comandante Castro estava já reformado da aviação comercial e acredito que ministrasse instrução de voo só para combater o ócio. Até porque quem realmente pilotava era o aluno. Mas tinha sempre uma atitude totalmente profissional, atento ao mais ínfimo detalhe. Era afável, sorridente, mas não deixava de exercer a sua autoridade (e dever) como comandante nos voos de instrução. Fazia-o com pedagogia, ajudando o aluno piloto a crescer. Era mais um avô do que um general no cockpit.

Não tinha a postura de tentar impressionar os alunos com a histórias dos seus tempos em caças da FAP num impulso de demonstrar a sua destreza no Cessna 152. Mas tinha histórias muito giras para contar. Um dia fomos em voo de navegação a Coimbra. Saímos do avião e tomámos um café no aeródromo. Contou-me que o Yasser Arafat usava um avião Antonov 24 registado na Guiné-Bissau quando andava fugido pela Líbia, e que ele chegou a fazer algum voo. Achava que os pilotos do líder da OLP eram pouco profissionais e relatou o acidente na Líbia em que se despenharam no deserto. No regresso a Lisboa, viemos do estacionamento pelo taxiway rumo à pista para descolar na pista 34 (Norte). O taxiway desemboca quase no início da pista de 900 de metros, ficando uns 800 dali para a frente. Para descolar o C152 bastariam 300 metros. Por isso, para mim, descolava já dali. O Cte. Castro fez-me ir dar a volta e ir ao fim da pista para aproveitar aqueles 80 metros. Nunca me esqueci deste pormenor. Havia sempre tempo para fazer as coisas em segurança. Ele tinha avisado que a pista era um porta-aviões, com precipício em ambas as cabeceiras, se tivéssemos um problema à descolagem… Anos mais tarde vi um acidente da Turkish em Katmandu (outro porta-aviões) e recordei-me do valor de um milímetro de pista.

Uma vez andava a fazer o walkaround ao avião antes da aula com a check-list na mão (levar o opúsculo era obrigatório, mas nem todos o faziam). Levava mais algum tempo porque ia lendo o livrinho a cada passo. O Cte. Castro esperava no hangar que me despachasse para seguirmos. Descobri um parafuso desenroscado uns dois a três milímetros na fuselagem, e referi-o quando ele me perguntou se estava tudo OK. Era verdadeiramente insignificante do ponto de vista de segurança e poderia ser apertado no regresso. A atitude dele nunca me esqueço. Fez um compasso de reflexão de um segundo, voltou ao hangar, e regressou com uma chave de fendas, perguntou onde estava esse parafuso e apertou-o no lugar. Era notório que desvalorizava o perigo, mas a cultura de segurança não tem preço.

A bordo só falava. Cruzava os braços e raramente tocava nos comandos. Disparava berros “olhe a altitude”, “olhe a velocidade”, “o que é isso…” mal o aluno se distraía de uma coisa. Era ensurdecedor quando o aluno estava “atrás do avião” a ouvir alarmes uns atrás dos outros. O Cte. Castro formava comandantes, gestores de voo, capazes de ler situações e agir consoante as prioridades. Fora da aviação são skills de multi-tasking e risk management. Deixava o aluno ‘falhar’ enquanto não houvesse perigo. Na dita viagem a Coimbra fiz uma asneira que serviu de lição para sempre. Era um voo de navegação que me levou horas a preparar, a traçar rumos num mapa, calcular distâncias, tempos de voo, e outros detalhes para fazer o plano de voo. Já em voo, depois de ter saído da zona de Sintra, o controlador de tráfego aéreo propôs via rádio uma rota direta e mais rápida em vez da poligonal que eu tinha traçado. O Cte. Castro disse-me que fosse eu a decidir. Sem pensar muito tempo, achei que se o controlador (que evidentemente saberia mais que eu da aviação) o propôs, e se o instrutor (com mais de 20 000 horas de voo) não se opunha, só ficaria mal da minha parte rejeitar sem motivo. Aceitei e segui o rumo indicado. Logo a seguir o Cte. Castro lembrou-me da minha imprudência. Então o planeamento? Quanto tempo leva a chegar? Qual o combustível que fica? Pois é, quem está no avião é que tem as variáveis todas na mão e a responsabilidade. Lembro-me deste exemplo todas as semanas na minha atividade profissional, noutra área distinta.

Fiz, com sucesso, o exame de voo a 29 de janeiro de 2008.

O momento mais memorável foi o meu voo de “largada”, a 13 de dezembro de 2007. Estávamos numa série de toca-e-anda em Tires e antes de entrar para a final, o Cte. Castro comunicou ao controlador que íamos fazer um stop-and-go. Nunca tinha ouvido esse termo. Quando tocámos na pista o Cte. Castro disse para ir ao estacionamento que ele ia sair, mas sem desligar o motor. Abre a porta e diz-me para voltar ao ar. De repente a atitude do aluno de achar o instrutor nada mais que um chato “lastro” muda para ansiedade, só de pensar em voar sem a segurança da sua presença. Só me ocorreu balbuciar “como é agora lá em cima”? Respondeu que “o avião fica mais leve”. Safei-me do banho de água à custa de pagar uma garrafa de whisky, porque ia voltar ao escritório logo a seguir.

A última vez que vi o Comandante Marin de Castro foi num voo de refrescamento a 31 de maio de 2009, no CS-ASO, o último voo que fiz como piloto também. A minha caderneta regista 61h55 sendo essa a última entrada, em que eu fui aluno e ele o Comandante.

Não sei quantos pilotos ensinou em Portugal e pelo mundo além, mas serão muitos os grandes profissionais e os outros amantes incondicionais da aviação que, juntos, encheram páginas e páginas dos Log Book dos Cessna 152.

 

 

  • Em dezembro de 2014, o comandante José Fernando Marin de Castro, foi galardoado com o ‘Prémio Aero Club de Portugal 2014’, como então referiu o ‘Newsavia’ (LINK notícia relacionada). O prémio foi apresentado através de um vídeo que mostrava os melhores momentos da carreira de 60 anos de José Fernando Marin de Castro, piloto instrutor reformado do Aero Club, com 26 mil horas de voo e mais de 50 mil aterragens, acumuladas numa longa carreira militar e comercial. Foi um dos momentos mais emocionantes da noite, na qual  Marin de Castro recebeu uma merecida ovação de pé que durou vários minutos.

 

Noite de glamour e de emoção na celebração dos 105 anos do Aero Club de Portugal

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