Quando o céu não é o bastante

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Quando me perguntam se não tenho medo de voar, se não é estranho que um avião mantenha-se no ar, eu explico, com um sorriso, que o céu é o chão do avião. Este incrível engenho humano foi projeto para voar, e quando está se deslocando pelo ar, uma aeronave está em seu habitat natural, e que na verdade, para mudarmos o avião de direção, precisamos é desestabilizá-lo, de forma controlada, sobre alguns de seus eixos. Mas isso nem sempre sai como esperado.

Sempre que vemos um acidente pensamos como pode ter acontecido, tentando desvendar alguma ideia de como evitar que nós mesmos acabemos por nos envolver em algo semelhante. Nos meus primeiros voos como piloto, em aeronaves monomotoras em voos visuais, o grande desafio era manter o controle do avião, fazendo com que ele respondesse aos comandos exatos que eu lhe dava. Não é algo intuitivo como pode parecer à primeira vista. Com cerca de quatro horas de voo me lembro do quão frustrado eu estava em não conseguir taxiar corretamente, e mais ainda, em aproximar o avião da pista para pousar da forma correta. Uma dificuldade, por exemplo, era a chegar veloz e alto demais.

Por medo de o avião perder sustentação, eu vinha com muita velocidade. E por temor de me esborrachar contra o asfalto, iniciava o arredondamento alto demais. Isso viria a acontecer, hoje sei, com todos os demais modelos que eu viria a voar depois, e só após algumas dezenas de pousos essa relação, para cada avião, começava a tornar-se natural. A velocidade de referência de aproximação é considerada 1.3 da velocidade de stall, ou seja, 30% maior que a velocidade em que uma aeronave entra num ângulo de ataque acentuado o bastante para não mais manter-se voando. No caso do Cessna 152 em que tirei minha licença de piloto privado, aproximávamos a cerca de 60 a 65 nós, e como ele estola por volta de 35 nós na configuração para pouso, estávamos obviamente muito longe da possibilidade de despencarmos sobre a pista. Para provar isso, meu instrutor me levou para fazermos uma manobra chamada de slow flight. Nela, você traz a aeronave para a velocidade em que os efeitos do stall começam a aparecer, entre eles a característica buzina do alarme de stall – no Cessna causada por uma interessante peça aerodinâmica no bordo de ataque da asa – e a mantém em voo nivelado, controlado, fazendo curvas, subindo e descendo, com a potência mínima necessária para manter o avião voando. Com a confiança de ver o avião voar com desenvoltura mesmo à quase metade da velocidade em que nos aproximávamos da pista, ficou bem mais fácil para mim aprender o mais essencial dos fundamentos para um piloto, o pouso.

Infelizmente, tivemos no passado recente uma quantidade relevante de acidentes que foram classificados como LOC-I, ou Loss of Control Inflight, que nada mais é que a perda de controle em voo de uma aeronave. Nem tão incomum assim em aeronaves menores, vê-la acometer grandes jatos comerciais é particularmente pertubardor. Os operadores de todo o mundo, fabricantes e agências reguladoras reagem com certa rapidez a certas tendências, e ênfase é dada ao treinamento de pilotos para reconhecer e recuperar suas aeronaves caso entrem numa condição de voo que saia da normalidade. As investigações de alguns acidentes recentes mostram que dificilmente esta perda ocorre sem ser induzida por alguma falha menor do equipamento com uma reação inadequada da tripulação. Embora na maioria esmagadora dos casos essas falhas sejam contornadas sem dificuldade seguindo procedimentos padronizados e checklists, quando não o são, acabam levando a eventos inclusive fatais, nos quais se enquadram o acidente com o Airbus A330 da Air France que ia do Rio para Paris, e mais recentemente do Airbus A320 da AirAsia, na Indonésia. Mas ainda mais perplexos ficamos ao ver acidentes em que a aeronave funcionava perfeitamente, mas seus pilotos, levados por fadiga e outros fatores como despadronização ou falta de atenção, deixam suas aeronaves fora de controle ao ponto de tornarem-se irrecuperáveis. Nessa categoria entram o Boeing 777-300 da Asiana que chocou-se com as pedras na cabeceira da pista em San Francisco quando seus pilotos demoraram a reconhecer e reagir a uma aproximação desestabilizada e o Boeing 737-800 da Kenya Airways, em que o piloto que estava voando o avião achou que havia acoplado o piloto automático, e nem ele nem seu colega que o monitorava perceberam que na verdade o avião estava voando sem que ninguém efetivamente o estivesse pilotando.

Podem parecer erros primários, em especial para pilotos profissionais com anos de experiência. Mas num ambiente complexo e dinâmico como a cabine de comando de um avião, é preciso que nos policiemos todo o tempo, num equilíbrio constante entre tensão e tranquilidade, seriedade e descontração, usando a padronização de procedimentos como elemento fundamental para reconhecer e mitigar os riscos inerentes ao voo. Pesquisando certos acidentes, é fácil reconhecer-se em alguns erros cometidos pela tripulação, e despirmo-nos da falsa e perigosa pretensão de acharmos que nunca erraríamos como eles erraram. É um exercício angustiante e melancólico, mas estudarmos que tipos de acidentes são mais comuns às aeronaves ou aos ambientes em que pilotamos é fundamental para que escapemos dos mesmos equívocos que provocaram a morte de colegas de uma profissão fascinante mas de grande responsabilidade.

Lazy 8

Foto: O instrutor Mike demonstra o chamado “chandelle” em um Piper PA-28 Archer III sobre o litoral sul da Florida. Manobras como essa, entre outras, fazem parte da formação básica de um piloto justamente para que ele se familiarize desde cedo com possíveis atitudes anormais de uma aeronave e saiba como corrigí-las.

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