Terra Plana e os navegadores dos céus, terra e mar

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Dentre as muitas bobagens que circulam na internet, poucas têm estado tão em voga quanto a teoria da Terra Plana. Pois é, por incrível que pareça, a essa altura do campeonato, ressuscitaram um conceito de quando nossa Ciência engatinhava. No Brasil, estão concentrados vários dos defensores dessa tese, e na verdade, quando nós vemos entrevistas com os líderes do movimento, fica claro tratar-se mais de um enfrentamento religioso do que de uma abordagem objetiva.

Esses dias, saiu um vídeo hilário sobre o assunto numa das páginas dedicadas aos terraplanistas. Um passageiro pede para falar com o comandante de um voo entre a Tailândia e os Estados Unidos. Após cumprimentá-lo, o passageiro pergunta qual o ângulo de descida que o avião usa, no que o piloto, de maneira séria responde “três graus”. “Só isso?” indaga o passageiro, cuja pergunta não se referia à descida em direção ao solo – que geralmente usa três graus como referência, mas ao acompanhamento da curvatura da Terra. Pois é. O comandante, ainda sem entender a interpelação, explica que o avião acompanha a troposfera, por isso naturalmente acompanha a curvatura. Então o iluminado explica que estava lendo sobre Terra Plana e tal, e o comandante, ao perceber que havia perdido dois preciosos e insubstituíveis minutos de sua vida, responde, categórico: “É verdade.”

Claro que o testemunho dele serviu de combustível de foguete aos terraplanistas, mas nós, colegas do importunado comandante, sabemos que tratou-se apenas de uma “saída à francesa”, como se diz por aqui. Quem “inventou” que a Terra era redonda não foi a NASA, claro. Foram os beduínos no deserto, os navegadores vikings, portugueses, polinésios, e tantos outros, que usavam métodos de navegação que simplesmente não funcionariam se a Terra fosse plana. Ou seja, muito antes da religião principal do Ocidente aceitar esse fato e deixar que a população em geral o assimilasse, nós, profissionais da navegação, já sabíamos. Colombo nunca chegou na Índia, mas não foi porque a Terra era plana, e sim porque a América ficava no meio do caminho – na verdade, a cerca de um quarto. Os conselheiros do rei de Portugal, na época, disseram ao soberano que Colombo estava certo em dizer que a Índia era praquele lado, porém muito mais longe do que alegava o genovês. Anos depois, Vasco da Gama, saindo pelo lado mais próximo, contornou a África e chegou à Índia – derrubando outra teoria bastante conhecida, a de que o Oceano Índico era um mar fechado. Mas se teve uma expedição que pôs fim a qualquer dúvida, foi a de Fernão de Magalhães, que embora tenha ele próprio morrido na Polinésia ao se envolver numa disputa tribal, teve parte de sua frota voltando à Europa navegando de Leste para Oeste por cerca de dois anos – terraplanistas dirão que isso não é exatamente impossível mesmo sem uma Terra “normal”. Mas vamos voltar à aviação e ao conhecimento aeroespacial:

Se a Terra não fosse redonda, como poderia ser dia numa parte do mundo e noite em outra, ao mesmo tempo? Ou como um voo de Lisboa para São Paulo duraria quase o mesmo que um voo de Santiago do Chile para Auckland – na Terra Plana, é quase o dobro da distância. E como a Antártida seria fria e o Ártico também? A Terra tem uma curvatura que é possível medir: ela “cai” cinco metros a cada oito quilômetros. A atmosfera a acompanha, e como o avião mantém-se a uma distância regular do chão quando está em voo de cruzeiro, é natural que acompanhe quase que imperceptivelmente um chão que “cai” abaixo dele de forma tão sutil. Na verdade, essa curvatura explica justamente como um satélite não cai.

Se você arremessar uma pedra com uma força moderada, ela cairá a alguns metros de você. Se você arremessá-la a digamos, 1000 quilômetros por hora, ela demorará mais a cair, e o fará a alguns quilômetros de você. Mas… e se você arremessá-la a 28 mil quilômetros por hora? Ela cairá cerca de 5 metros a cada 8 quilômetros. Ou seja, a Terra cairá abaixo dela na mesma proporção. Por isso os astronautas parecem “sem gravidade”. Na verdade, eles estão sofrendo o efeito da gravidade terrestre, porém, estão “caindo” sem parar, pois foram acelerados a uma velocidade específica em que a curvatura da Terra antecede a queda deles mesmos. Velocidades altas assim, claro, só podem ser obtidas fora do arrasto que o ar causa, e por isso é preciso subir bem alto, mais de dez vezes mais alto do que voam os aviões, para conseguir isso. E como fazem para voltar? Desaceleram.

Enfim, a Teoria da Terra Plana exige que distorçamos a realidade de maneira grotesca para que faça sentido. Além do que é uma hipocrisia monstruosa a pessoa usar uma rede global (entendeu?) de computadores para falar tanta besteira. E os satélites meteorológicos? E a geolocalização do celular? Essa gente usa tudo que uma Terra redonda lhes oferece, mas na hora de disseminar um absurdo desses, não pensa duas vezes.

O mundo dá voltas, mas espero, sinceramente, que esta seja a última vez que preciso abordar esse tema.

Foto: eu, num Cessna 172, olhando para fora sobre o norte da Flórida, em 2013, a cerca de 4500 pés – muito provavelmente eu não estava tentando ver se a Terra é mesmo redonda. Aparentemente, com 12742km de diâmetro, fica difícil perceber para quem voa tão baixo e devagar. Mas mesmo no meu assento atual, num Boeing 737NG a 41mil pés – um milésimo do diâmetro da Terra – a curvatura é quase imperceptível, o que não significa que seja falsa, como sugere o céu escuro logo acima.

 

 


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