Um dia normal no escritório

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Quando acontece um acidente aéreo, todos imediatamente se debruçam, consternados, sobre o que pode ter acontecido de errado. Acredito que é da natureza humana, num misto de curiosidade mórbida, interesse genuíno e medo de sofrer o mesmo destino. Essas, como toda análise apaixonada e apressada, tendem a ser imprecisas, e podem, de forma salutar ou não, nos levar a questionar coisas que em geral não questionaríamos.

De certa forma, a cabine de comando de um avião é um escritório. Cercados de computadores e papéis, estamos o tempo todo nos comunicando sobre o que acontece ao redor, cuidando da burocracia e eventualmente até alguém traz uma bem-vinda xícara de café. Não obstante a vista privilegiada e o fato de que este escritório move-se  a quase mil quilômetros por hora, um comandante é sim o gerente de uma unidade de negócios de milhões de dólares, com receita diária bastante expressiva. Mas as semelhanças param por aí: no briefing antes de cada dia de trabalho, o gerente, e seus subordinados – copiloto, chefe de cabine e demais comissários – tratam do que pode dar errado. Para um passageiro mais apreensivo, a conversa rápida em que a tripulação se conhece e discute os procedimentos em caso de emergências seria surreal. Mas nosso trabalho é assim: não sabemos quando teremos uma pane grave, uma situação catastrófica, uma interferência ilícita violenta. Confiamos muito na máquina, no nosso treinamento e em nossa equipe, mas ninguém está livre. Todas as tripulações perdidas cumprindo seu dever não sabiam, ao saírem de casa, que aquela seria sua última viagem. E o mesmo ocorreu certamente com a tripulação da aeronave que caiu no sudoeste da Rússia em meados de março.

E na busca pelo que pode ter acontecido de errado, tentamos ver coisas onde elas não existem. E julgarmos, com a nossa experiência, do nosso sofá, com todo o tempo que temos, as ações que eles tomaram, é no mínimo desleal. Não sabemos, enquanto escrevo este artigo, o que fez o Boeing 737-800 interromper uma arremetida até então normal e despencar das nuvens em direção ao chão. Pode ser um monte de coisas, e um acidente aéreo geralmente é. De causas comuns como desorientação espacial a raras interações entre o gelo e o estabilizador horizontal de um jato. Não temos como saber ainda, e levará semanas até que tenhamos os dados das caixas pretas a explicar o que as câmera de segurança próximas ao aeroporto nos mostram, estupefatos.

Mas algumas coisas chamam a atenção nos questionamentos que aparecem nas redes sociais, na imprensa e mesmo na comunidade aeronáutica em geral. Por que mandariam um comandante que nunca voou para Rostov on Don para lá? Ora, não há absolutamente nada de incomum em se voar a algum lugar pela primeira vez. Os procedimentos por instrumentos, os regulamentos aeronáuticos e os aeródromos do mundo todo são suficientemente padronizados para que não seja nenhum desafio sobre-humano operar neles pela primeira vez. O comandante e o copiloto desse voo específico eram bastante experientes, ambos com quase 6 mil horas de voo. Pousar num aeroporto com uma pista de bom comprimento e procedimentos de precisão para ambas as cabeceiras não haveria de ser algo além de suas habilidades. Por que esperaram por duas horas antes da segunda aproximação? Bom, um voo começa bem antes de sair do chão. Toda uma equipe está por trás do despacho da aeronave, e já cientes das condições adversas no destino, a companhia decidiu por bem disponibilizar uma quantidade significativa de combustível extra para o voo. Com poucos passageiros, menos de um terço da capacidade, e combustível barato em Dubai, fazia todo o sentido, e é uma prática comum. Com mais de oito horas de autonomia para um trecho de apenas quatro, os pilotos chegaram ao destino com uma confortável margem. Na primeira tentativa de pouso, embora os ventos fossem mais fracos e a visibilidade e o teto maiores que da segunda vez, decidiram arremeter. Com um alternado próximo, estavam confortáveis em aguardar para ver se as condições melhorariam no destino. Primeiro fizeram uma espera de meia hora a 8 mil pés, e depois mais uma hora e meia no FL150. Por volta das três e meia da manhã, horário local, voltaram a tentar outra aproximação para a pista 22. O vento estava mais forte, porém mais alinhado com a pista, condições críticas mas perfeitamente dentro dos limites da aeronave. O teto um pouco mais baixo mas não o suficiente para que não tenham avistado a pista bem acima dos mínimos do procedimento. Mas, por algum motivo que ainda não sabemos, decidiram conservativamente interromper a aproximação. Dali provavelmente seguiriam para o alternado. Mas alguma coisa deu muito errado. As conversas com a torre de controle revelam uma operação totalmente normal, mas o fato é que meio minuto após desaparecer nas nuvens durante a arremetida, a aeronave reaparece em trajetória quase vertical em direção ao solo, numa cena à qual é impossível ficar indiferente.

Não deve ser um acidente difícil de elucidar: já temos de antemão muitos dados concretos. Com a leitura dos gravadores de voz e dados da aeronave, o quebra-cabeças poderá ser finalmente montado com precisão. O que esperamos é que em breve possamos saber o que deu errado, para, mais uma vez a um preço altíssimo, podermos deixar nossa aviação ainda mais segura. Para que cada vez mais voos continuem a ser apenas isso: um dia normal no escritório.

Foto: Um ATR-72-600 acaba de pousar enquanto um Boeing 737-800 prepara-se para decolar. Turbohélices como o ATR estão acostumados a enfrentar o gelo das camadas mais baixas da atmosfera, que os jatos, como o 737, geralmente encontram apenas por períodos curtos de tempo em suas subidas e descidas do alto da troposfera. Terá sido isso decisivo na madrugada fria sobre Rostov on Don? As investigações dirão. Foto de Isac Mamede, em Salvador, Brasil.

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