As caravelas do nosso tempo

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São quase 20h30 zulu, o Sol já se pôs a oeste, e a curiosa sombra de baixo para cima projetada pelos botões do painel de controle do piloto automático já desapareceu. Uma outra aeronave da companhia acaba de passar apenas mil pés abaixo em sentido oposto. Na luz tênue do fim de tarde, conforme o losango branco se preenche no TCAS, olhamos para fora e os saudamos acendendo nossos faróis brevemente, sendo imediatamente correspondidos pelos colegas que desaparecem da nossa vista a quase mil e oitocentos quilômetros por hora de velocidade relativa. Sob o controle do enorme centro Recife, às esparsas chamadas das aeronaves que atravessam as aerovias próximas daquele setor soma-se a de um cordial visitante que acaba de atravessar o Atlântico. “Recife Center, boa noite, Air Portugal eighty niner, flight level four zero zero”. Como de praxe, por ser uma aeronave estrangeira, sua comunicação é feita com o controle de tráfego em inglês, em meio à maioria da fonia executada em português pelas aeronaves brasileiras.

Há alguma controvérsia sobre como aconteceu, mas o fato é que boa parte da História do Brasil se desenrola a partir da chegada de Pedro Álvarez Cabral ao litoral sulamericano no ano de 1500. Como uma das rotas que mais faço é de voos bate-volta desde o Rio de Janeiro até capitais nordestinas, como Salvador e Recife, a chamada “costa do descobrimento” é para mim bastante familiar vista da janela direita da cabine de comando do Boeing 737, e mesmo no ND, ou navigation display, nome que recebe a tela de navegação no painel em frente a cada um dos pilotos. E é bastante comum eu me pegar, entre um cheque de combustível e outro, entre uma troca de frequência e outra, pensando em tudo que se desenrolou lá embaixo.

Seleciono a frequência de Porto Seguro no ADF, e coloco “SGR” na página de FIX do computador de bordo, criando um círculo de 120 milhas náuticas em torno. É uma maneira que tenho de saber se estou dentro do raio de descida de um bom alternado em rota caso alguma emergência repentina nos obrigue a buscar um lugar para pousar. No VHF 2, coloquei 116.5, e uma agulha verde aponta certeira na direção de Salvador, capital do estado brasileiro onde Cabral desembarcou – quando este era ainda, obviamente, um território ocupado por tupinambás e tupiniquins. A eles a frota portuguesa deve ter soado como soaria a nós uma invasão extraterrestre, tamanha a distância tecnológica que separava as duas culturas. Para nós, que fora o desconforto do colarinho que a gravata do uniforme relembra incessantemente, estamos sob um agradável ar-condicionado, munidos de pelo menos três métodos diferentes de navegação extremamente precisos, é curioso imaginar o que Cabral e seus marinheiros achariam se um Boeing ou Airbus lhes cruzasse as cabeças. Quão maravilhados, aqueles homens que dominavam os mares com seus sextantes e instintos, ficariam com nossos já antiquados sistemas de rádio navegação. Sim, pois ainda mais complicado seria explicar-lhes os giroscópios a laser que fazem com que nosso avião saiba onde está o tempo todo pelo sistema inercial, ou que há, centenas de quilômetros no espaço, uma rede de pequenas naves que com sinais de rádio e relógios sincronizadíssimos, nos permitem determinar com precisão de meros 180 metros nosso lugar sobre o planeta.

Nós seríamos os astronautas, os extraterrestres. Suas obsoletas caravelas, naus, e outros modelos que não domino, sujeitas aos humores dos ventos no vasto Atlântico, agora nos parecem assustadoras. Sempre me pergunto o que seria – apaixonado por aviões que sou desde a infância – se tivesse eu nascido em outro tempo. Se tivesse a sorte de ter podido sê-lo, lá para os idos do século XVI, navegador era uma boa possibilidade. A geografia que me encanta dos céus, me encantaria então do mar. Sem ar-condicionado, banheiro, ou telas de cristal líquido. Mas me encantaria igual, ou até mais que numa estéril cabine pressurizada.

Mas que não nos venhamos a iludir dos feitos que alcançamos: os tripulantes de uma nave dos anos 2500 hão de pensar de nós: “Que bravos – ou tontos – aqueles rapazes a cruzarem a troposfera a meros 80% da velocidade do som dependendo de motores a reação e GPS!”

 

Foto principal: um pequeno trecho dos quase mil quilômetros do belo litoral baiano, onde os portugueses desembarcaram no Novo Mundo cinco séculos atrás. Foto de Isac Mamede.

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